A Agropecuária Santa Adelaide, em Uruguaiana, na Fronteira Oeste, atualmente sob investigação por manter 54 trabalhadores em condição análoga à escravidão, já teve um de seus proprietários condenado em instância superior pelo mesmo crime, previsto no artigo 149 do Código Penal.
Jorge Milano Bergallo é, ainda hoje, sócio-administrador da fazenda, conforme informações registradas no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Receita Federal. Ele exercia a mesma função entre janeiro e março de 2009, quando o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em fiscalização na Santa Adelaide, resgataram dois trabalhadores que estavam atuando em condição análoga à escravidão no carregamento e no empilhamento de madeira.
O MTE confirmou que as fiscalizações de 2009 e de 2023, ambas com resgate de trabalhadores, ocorreram na mesma fazenda Santa Adelaide, em Uruguaiana.
Como o MPT e o MTE atuam na esfera trabalhista, o Ministério Público Federal (MPF) deu continuidade ao caso na esfera criminal, denunciando Bergallo pela prática do crime de redução dos trabalhadores à condição análoga à escravidão, mencionando dois critérios previstos em lei para essa classificação: situação degradante de trabalho e jornada exaustiva.
Na denúncia, recebida pela Justiça Federal em abril de 2011, foi narrado que os homens permaneceram por dois meses em um barraco construído com tábuas e lona, tomado por frestas, com telhado de zinco e palha, na propriedade rural. Eles trabalhavam de domingo a domingo, recebiam menos de um salário mínimo, não tinham registro de emprego nem direito ao vale-transporte. Por isso, narra a denúncia, permaneceram por pouco mais de 60 dias no alojamento, que não tinha banheiro ou mesa para refeição. Não havia água corrente. Era fornecido um barril sem torneira em que tinham de mergulhar as mãos para encher recipientes com água.
Decisão
A sentença da primeira instância veio em 2 de junho de 2016: Bergallo foi condenado por reduzir trabalhadores à condição análoga à escravidão. A pena foi estabelecida em dois anos e dois meses de reclusão, em regime aberto, substituída por multa e prestação de serviços à comunidade. O produtor rural apelou ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), mas não obteve sucesso. A decisão foi mantida em 7 de fevereiro de 2018.
Conforme escreveu o desembargador federal João Pedro Gebran Neto, relator da apelação no TRF4, “as fotografias que compõem o relatório de fiscalização bem demonstram a situação de moradia dos obreiros, que eram alojados em barracos incapazes de protegê-los das intempéries, além de possibilitar a entrada de insetos e outros animais”. Além disso, segundo ele, “não havia instalação sanitária”.
Acompanhado pela maioria, o magistrado avaliou que foi “plenamente possível a verificação do crime imputado” e “comprovada a autoria, a materialidade e o dolo”.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a condenação foi mantida, em agosto de 2020, com reforma da pena final para dois anos e quatro meses de reclusão. Contudo, o ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, determinou que havia ocorrido a “extinção da punibilidade”. Isso porque, em função do tempo de pena, a pretensão punitiva se encerraria em quatro anos.
Para calcular a prescrição da punibilidade, o magistrado considerou individualmente a pena-base para cada um dos dois delitos praticados, sem somá-las, fixada em dois anos. Por causa disso, o prazo de aplicação da sanção expirou em quatro anos, de acordo com a previsão do Código Penal.
Como a denúncia do MPF foi recebida em abril de 2011 e a condenação em primeira instância veio em junho de 2016, passaram-se pouco mais de cinco anos. Isso levou à prescrição da execução da pena. Sendo assim, Bergallo permaneceu condenado por reduzir trabalhadores a condição análoga à escravidão, mas não precisou cumprir a sanção. O caso teve trânsito em julgado no STJ em 25 de agosto de 2020.
Operação
No dia 10 de março de 2023, 13 anos após o caso de 2009, a fazenda Santa Adelaide novamente foi alvo de operação de resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão. A ofensiva ainda alcançou outra propriedade envolvida, a estância São Joaquim, também em Uruguaiana.
Após a fiscalização, foram interrompidas as atividades de 85 homens que atuavam no corte do arroz vermelho, espécie de inço que se destaca mais do que o grão cultivado. Os homens trabalhavam sem equipamentos de proteção, não dispunham de banheiro ou local para refeição e tampouco tinham lugar para acondicionar a comida. Um dos resgatados relatou a GZH que, por duas vezes, aviões agrícolas pulverizaram a plantação com agrotóxico enquanto eles trabalhavam no solo.
A operação foi desencadeada por MPT e MTE, que atuam na área trabalhista e administrativa, buscando o pagamento de indenizações aos trabalhadores, e pela Polícia Federal (PF), cuja atribuição é a investigação criminal do caso.
Os órgãos classificaram o caso atual como de redução a trabalho análogo à escravidão por causa das condições degradantes, o que é um requisito previsto no artigo 149 do Código Penal. Havia 11 adolescentes trabalhando nas propriedades, sendo 10 deles na Santa Adelaide.
No dia 21, a Santa Adelaide assinou termo de ajuste de conduta (TAC) com o MPT se comprometendo a pagar R$ 228,9 mil aos 54 trabalhadores que atuavam na propriedade a título de verbas rescisórias. Também ficou acertado que a empresa irá custear o tratamento de saúde de um adolescente que perdeu parcialmente os movimentos de um dos pés após acidente com facão na lavoura. A eventual reparação por danos morais coletivos e individuais será discutida posteriormente, de acordo com o TAC.
Contraponto
O que diz o advogado Marcelo Peruchin, defensor de Jorge Milano Bergallo
“Em relação ao episódio ocorrido no dia 10.03, a Agropecuária Santa Adelaide Ltda publicou uma nota na qual externou a sua posição institucional. Inexiste qualquer imputação criminal tendo por objeto a Agropecuária Santa Adelaide Ltda ou seu administrador, em especial por não ser ela a empregadora ou a coordenadora técnica do trabalho que era executado.
Mesmo assim, a empresa imediatamente colocou-se à disposição de todas as autoridades públicas afetas ao evento, com a já expressada disponibilidade em colaborar integralmente com os respectivos procedimentos.
Quanto ao processo anterior indagado, houve a extinção da punibilidade pelo Superior Tribunal de Justiça antes de qualquer trânsito em julgado de condenação criminal; portanto, não há a possibilidade técnica de configuração de reincidência, sendo até mesmo contrário à lei tal cogitação, igualmente por não haver um contexto apto para tal perspectiva.
A Agropecuária Santa Adelaide Ltda possui mais de 30 anos de tradição no setor, e reitera o seu compromisso com o respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa no exercício de seu mister.
Sempre que instada a tanto, a empresa se manifestará nos autos dos procedimentos instaurados, no intuito do pleno esclarecimento dos fatos e das responsabilidades.”