Daqui a 20 dias, em 27 de janeiro, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central, completa 10 anos. A tragédia deixou 242 mortos e mais de 600 feridos.
Para marcar o início das homenagens às vítimas, o coletivo Kiss - Que Não se Repita deu início, neste sábado (7), ao projeto Tempo Perdido, que vai retratar por simulações como estariam, dez anos depois, as fisionomias de oito pessoas que perderam a vida no local. A chamada progressão de tempo é feita com recursos de inteligência artificial e terá resultado mostrado em fotos.
A primeira simulação, feita por um profissional que só terá a identidade divulgada no dia 27, é da ex-funcionária da boate Letícia Vasconcellos. Ela tinha 36 anos quando morreu asfixiada pela fumaça tóxica liberada pelas espumas para isolamento acústico da casa noturna.
Conforme os responsáveis pelo projeto, o objetivo é trazer conforto e amor para as oito famílias escolhidas, que aprovaram a ação. Sete das vítimas retratadas eram de Santa Maria e uma de São Gabriel. Serão quatro homens e quatro mulheres.
Todos eles terão história apresentada na série sobre a tragédia que está sendo produzida pela Netflix, Todo Dia a Mesma Noite. As simulações serão divulgadas semanalmente nas redes sociais do coletivo até o dia 25, quando serão expostos banners com as comparações nas ruas da cidade.
Entre novembro e dezembro, uma vaquinha online foi realizada para arrecadar recursos para desenvolver o projeto. A meta era conseguir R$ 2,5 mil, mas 36 pessoas doaram pouco mais de R$ 3 mil. Além dos banners com as simulações, serão impressas fotos do trabalho que serão entregues para as oito famílias em uma caixa personalizada no dia 27.
— Todas as famílias escolhidas abraçaram a ideia da forma mais amorosa possível, contando que imaginam todos os dias como seus entes estariam se ainda fossem vivos. Esse projeto é uma forma de carinho que queremos dar a todos esses corações, depois de uma década convivendo com a impunidade e a saudade. Para que a memória se mantenha sempre viva e que a Kiss nunca mais se repita — afirma André Polga, fundador do Coletivo.
Letícia voltou à boate para ajudar pessoas a saírem
A primeira homenageada, Letícia Vasconcellos, 36 anos, era funcionária da boate Kiss. Trabalhava no local há cerca de dois anos como recepcionista. Quem conseguiu o emprego foi a sua irmã mais nova, Vanessa, que atuava como responsável pela comunicação da casa noturna e afirma que a homenagem, embora impactante, ajuda a manter viva a memória de Letícia.
— Estamos muito ansiosos para ver. Para nós, ela sempre vai ser como era até o dia da tragédia. Mas ver essa homenagem traz até um conforto, possibilitando que a gente consiga imaginar como ela estaria. Toda homenagem é sempre muito impactante e, embora seja um pouco sofrido, também é reconfortante, porque ela sempre vai estar viva dentro da gente e essa homenagem mostra que a memória dela também está — destaca.
Vanessa foi demitida em dezembro de 2012, após cerca de dois anos. Ela, inclusive, concedeu diversas entrevistas e depôs à Polícia Civil denunciando obras sem acompanhamento técnico realizadas na Kiss, a preocupação com o visual da casa em detrimento a questões de segurança e a ideia de que "quanto mais pessoas entrassem na boate, melhor".
Como trabalhava próximo à porta de saída, Letícia voltou ao interior da boate para orientar diversos jovens a saírem do local, já que muitos estavam indo em direção aos banheiros, onde a maioria das vítimas morreu. Dessa forma, acabou inalando muita fumaça e não sobreviveu.
— Quando eu ia descendo a rua e vendo pessoas que eu conhecia, comecei a perguntar pela minha irmã. Muitos disseram que tinham visto ela na rua. Eu comecei a ficar desesperada, tentei entrar, porque a gente não via fogo, apenas fumaça. Coloquei uma camisa no rosto, mas meu pai me agarrou. Pedi a um funcionário que estava quebrando uma parede para que entrasse e procurasse ela. Logo ele entrou e voltou dizendo que ela havia morrido — recorda.
Aquela noite era o último dia de trabalho de Letícia na Kiss. Ela havia sido contratada por uma loja de roupas.
— Ela ganhava pouco na Kiss e queria dar uma vida melhor para os filhos. Ela estava em dúvida se ia ou não na festa aquele dia, mas ia ter recesso na casa, e ela se dava bem com todo mundo, então foi para fazer uma despedida. Mas acabou sendo uma despedida para a gente — lamenta Vanessa.
Além da irmã, Letícia deixou saudade aos filhos Vinicius e Júlia, hoje com 23 e 16 anos, respectivamente, e aos pais Renato, falecido em 2018, e Erci.
A divulgação da simulação da próxima vítima retratada no projeto será entre segunda (9) e terça-feira (10).