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Começou em Bristol, no Reino Unido, com a derrubada da estátua de traficante de escravos Edward Colston. Desde o final de semana, movimentos semelhantes têm se repetido mundo afora, com o questionamento à presença de monumentos de exaltação a personalidades históricas de passado indigno.
Nesta terça-feira (9), uma multidão se reuniu na Universidade de Oxford, no Reino Unido, pedindo a retirada da estátua de Cecil Rhodes, fundador da antiga colônia britânica da Rodésia, atual Zimbábue. Mais cedo, na Bélgica, a prefeitura da Antuérpia retirou a figura do rei Leopoldo II, acusado de genocídio durante a colonização belga no Congo. Em São Paulo, grupos organizados pedem a destruição da imagem de Borba Gato, bandeirante acusado de escravizar negros e índios.
O debate não é recente e todos os personagens acima já foram alvo de questionamentos nos últimos anos. Para uma parcela da sociedade, cada vez mais ativa nas ruas ou nas redes sociais, não cabe eternizar em bronze ou concreto, sobretudo em praça pública, a imagem de assassinos ou figurões cuja fortuna foi construída à custa da exploração alheia.
Em Londres, o prefeito Sadiq Kahn anunciou a criação de um estudo para revisar todas os monumentos e nomes de ruas com alusão aos tempos imperiais. Em Bristol, o prefeito Marvin Rees reconheceu a legitimidade do ato que levou 10 mil pessoas às ruas da cidade:
— Sei que a remoção da estátua de Colston divide opiniões, mas é importante ouvir aqueles que veem nela uma afronta à humanidade e fazem de hoje um legado para o futuro da nossa cidade, combatendo o racismo e a desigualdade em todos os cantos.
No Brasil, uma manifestação do escritor Laurentino Gomes causou polêmica. Autor de uma trilogia sobre o Brasil imperial e de uma obra também deverá chegar a três volumes sobre a escravidão, ele defendeu a permanência da estátua de Borba Gato em São Paulo. “Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objeto de estudo e reflexão”, escreveu.
Na sequência, Laurentino redigiu uma minibiografia na qual revelava o passado criminoso de Borba Gato, um assassino, escravista e contrabandista que ganhou da coroa portuguesa cargos e honrarias, bem como a anistia, em troca da localização de uma mina preciosa.
“Com 10 metros de altura e 20 toneladas de peso, a atual estátua de Borba Gato no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, é feia que dói. Ainda assim, deve lá ficar. Mas ao passar por ela, as pessoas devem saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”, resumiu.
Tal opinião é compartilhada pela escritora Mary Del Priore. Autora de 16 obras e considerada uma das principais historiadoras brasileiras, a professora afirma que mais importante que derrubar estátuas é informar a população sobre cada personagem polêmico do nosso passado. Mary, todavia, entende e considera justa a revolta dos grupos que se mobilizam para remover monumentos:
— Não existem mitos na história, pessoas que estejam acima do bem e do mal. São pessoas de carne e osso, que erraram para um lado e acertaram para o outro, presos as suas circunstâncias históricas. É preciso deixar de lado essa obsessão pelo herói impoluto, isso não existe. Claro que são válidos esses movimentos de massa que em momentos catárticos saem derrubando tudo, mas não creio que seja o caminho, embora em determinados momentos se justifique.
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Doutor em História da Arte, escultor e pesquisador, José Francisco Alves lembra que a derrubada de estátuas é um fenômeno comum, por vezes mais lembrado do que o destino dos próprios personagens. A queda da estátua de Saddam Hussein, no Iraque, exemplifica, marca mais a memória coletiva do que o enforcamento do ditador. Autor de A Escultura Pública de Porto Alegre, obra de referência sobre monumentos da Capital, ele defende uma discussão legislativa sobre a retirada de estátuas ou a mudança de nome de logradouros.
— Na Espanha foi assim com os monumentos de exaltação ao General Franco, banidos pela Lei da Memória Histórica. Até seus restos mortais a família teve de retirar do Vale dos Caídos. Em Porto Alegre, a Avenida Salgado Filho por muitos anos se chamou 10 de Novembro e o nome foi trocado porque comemorava os 10 anos de governo de Getúlio Vargas, quando ele já era um ditador — comenta.
Alves sustenta que a destruição de monumentos deve ser entendida em seu contexto, como a derrubada da Coluna de Vendôme pela Comuna de Paris em 1870, e entende que o levante atual tem justificava na insurgência global contra o racismo. Contudo, considera importante discutir se há limite para atos de revisionismo histórico que buscam apagar da paisagem urbana determinadas personalidades.
— Até quanto isso vale? Heróis farroupilhas tinham escravos. Vamos retroceder até o Império Romano e destruir a estátua de Marco Aurélio, em Roma? A democracia grega nasceu na escravatura. Cada caso é um caso e cada movimento tem seu contexto histórico — contemporiza.
Para o historiador Gunter Axt, ainda que os atos de remoção de estátuas sejam pacíficos e dotados de plena justificativa humanitária, o ideal é que as ações tenham respaldo legal, com aprovação parlamentar.
— Tem que ser pela lei, com diálogo. Sei que hoje tudo e todos são objeto de questionamento. Na Inglaterra, agora estão contra (ex-primeiro-ministro Winston) Churchill. Mas é melhor ter conversa e consenso para se agir com cautela do que multidões enfurecidas botando tudo abaixo — avalia.