Para entrar e fazer carreira no mercado de medicamentos, é preciso ser perverso e ter capacidade para transgredir. Um pouco de cinismo, muita simpatia e malícia também são requisitos básicos. Esqueça a causa animal e, durante uma entrevista de emprego, jamais diga qual é a sua religião, principalmente se você for evangélico. Mulheres devem estar preparadas para o assédio. Essas foram algumas das lições aprendidas pela reportagem durante um curso de formação de propagandista, no início de abril, em Porto Alegre, realizado pela Propamed, uma empresa com 34 anos de atuação no ramo.
Quem compartilhou conhecimentos com a turma de 19 alunos foi o diretor-presidente da Propamed, Alexandre Guzinski, um ex-propagandista e ex-gerente com 20 anos de experiência no setor e que trabalhou nas principais empresas farmacêuticas do mundo.
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A maior parte do primeiro dia de aula foi destinada a testar os limites da turma formada, em sua maioria, por mulheres. Piadas e comentários machistas e preconceituosos eram repetidos a todo instante. E vinham acompanhados por críticas à "sociedade do mimimi". A justificativa?
– A indústria não quer o politicamente correto, ela quer o perverso.
Por incontáveis vezes, Guzinski lançou olhares e fez comentários sobre os corpos das alunas. A certa altura, agarrou uma jovem pelo cabelo e simulou um beijo, para reforçar o discurso de que "o mundo não pertence aos bundões, tem de ter atitude".
Em outro momento, o professor deu nota para o bumbum de uma aluna e incitou os alunos a fazerem o mesmo. A explicação foi que, nas entrevistas de emprego, "se é mulher, é avaliada como vaca". Ele também aconselhou as alunas que "mulher tem de sempre ser uma possibilidade". Em seguida, acariciou o braço de uma jovem:
– Isso aqui é uma pequena prostituiçãozinha. Ela não vai poder sair daqui dizendo que é feminista, caminhando e cantando "médico tarado". Mas tem de saber a forma como sai do meu toque. Porque isso vai acontecer. Se é bonita, mais. Se é feia, menos. As mais bonitas têm de criar anticorpos para isso.
No final do dia, após quase 12 horas de curso, o professor pediu desculpas pelas "brincadeiras" e tentou justificar o comportamento:
– A indústria farmacêutica é rude, bruta e truculenta, como a vida.
Na turma, havia farmacêuticos, ex-bancários, empresários, advogados e comerciantes. Todos atraídos pelos salários, que podem ultrapassar R$ 10 mil, incluindo comissões. Há laboratórios que ainda oferecem carro e até ajuda de custo mensal para compra de roupas, sapatos e acessórios. Afinal, boa aparência e apresentação são indispensáveis para prosseguir na carreira.
No curso, o professor deixou claro que os futuros propagandistas terão de cometer ilicitudes e insinuou, inclusive, entrega de dinheiro para os médicos. Foi nesse momento que, após um aluno contar ter sido barrado em uma seleção por ser evangélico, recomendou que as respostas sejam neutras durante uma entrevista – em vez de revelar a religião, sugere que se diga apenas "acredito em Deus" – e explica:
– Sabe por que não contrato evangélico? Porque acho que evangélico não se desprende. (...) Mas qual é o preconceito? Que evangélico é o Joãozinho do Passo Certo, e, às vezes, tu vai precisar vender joelho para quem não precisa de joelho. (...) Acho que pessoas que têm determinadas religiões não vão cometer o ilícito. Então, não ache que a indústria farmacêutica faz medicamentos para salvar vidas. Ela faz medicamentos para ganhar dinheiro. Não importa se aquele medicamento vai fazer bem ou mal para o paciente. Ou vocês não acham curioso que os planos de saúde paguem R$ 60 por uma consulta e tem médico milionário? Quem é que leva o dinheiro para o médico? (risos) É tu. E aí? Vai ficar te questionando se é certo?
A parte final do curso de dois dias foi dedicada à propaganda médica na prática. Depois de explicar como funciona a coleta de informações das prescrições médicas, partiu para a simulação de visitas aos consultórios. Segundo Guzinski, "a propaganda médica não pode ser só uma divulgação médico-científica, tem de criar um acordo de cavalheiros":
– Tens de dizer: "Doutor, a minha visita custa dinheiro para o laboratório, vir todas as vezes aqui é caro. Posso contar com cinco prescrições?" Mas aqui uma linha bastante tênue. Alguns laboratórios não querem que faça isso, porque seria indução à prescrição desnecessária. Mas, no momento da entrevista, é importantíssimo que mostre que tem essa atitude, que é um vendedor que fecha o acordo comercial.
Os ensinamentos do ex-propagandista contrariam o discurso da indústria. Contratado por laboratórios para montar e treinar equipes, o instrutor demonstra que a troca de favores é uma prática comum no meio. Ele encerra a simulação da visita oferecendo uma viagem ao Caribe e um tablet como brinde para o médico, após inúmeras tentativas de conquistar o receituário do profissional. A performance arrancou risos dos alunos.
– Não estou dizendo que isso nunca acontece, não estou dizendo que isso sempre acontece. Tem laboratórios que fazem isso. Portanto, se é faixa preta dos evangélicos, não consegue fazer isso porque acha que é sacanagem e pecado – concluiu.
O que diz Alexandre Guzinski
"Não tem nada que fale no curso que não seja público. Preparo as pessoas para o mercado lá fora, pessoas que não estão acostumadas a lidar com a área comercial. O comportamento tem uma justificativa que é explicada ao longo do curso. É uma dinâmica. Primeiro, a gente leva as pessoas ao estresse, para ver como reagem frente a um ambiente mais duro, mais difícil e, por vezes, machista. Na prática, o curso é vivencial. Vai preparar as meninas para lidar em um ambiente... Tanto que faço o curso com a minha esposa junto. Então, jamais poderia ter um comportamento desrespeitoso estando diante da minha esposa. É um curso familiar."
"A propaganda não tem nenhum sentido"
ENTREVISTA: José Ruben Bonfim, médico, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos
Como você avalia a relação de médicos e indústria farmacêutica?
A relação entre médicos e indústria farmacêutica tem muitos aspectos que no Brasil tem regulação insuficiente, alguns pesquisadores até consideram nula, por parte do poder público. A questão básica é a de que os médicos, qualquer que seja sua atividade (clínica, pesquisa ou outra), não deveriam permitir que houvesse influência de terceiros. Recebem visitas dos propagandistas e esse tipo de contato não tem nenhuma proposta de regulação consistente, incluindo a resolução 96 da Anvisa, de 17/12/2008, e seus acréscimos.
Qual o papel do propagandista?
A função de um propagandista de produtos farmacêuticos é persuadir, usando até técnicas psicológicas, e outras habilidades de comunicação, com relação à qualidade superior dos produtos da empresa em que trabalha, diante de seus concorrentes. Ele não transmite, a rigor, nenhuma informação científica comparada, frequentemente disponível em bases de dados fidedignas, muitas delas de acesso gratuito, que um médico tem de saber consultar e examinar para fazer escolhas terapêuticas. Não precisa receber nenhuma visita de propagandista que vai envolvê-lo com mimos, como amostras gratuitas e toda sorte de brindes. Alguém pode achar que é exagero de minha parte, mas acho que a função de propagandista é inútil porque, mesmo que se considere que, na sociedade capitalista global, um produto farmacêutico seja considerado mercadoria, e produzido como tal, a sua aplicação não se relaciona com a de uma transação comercial. É, em verdade, uma questão bioética. Um produto farmacêutico não é uma mercadoria, como um eletrodoméstico.
Existe caminho alternativo?
Não deveria existir nenhuma espécie de persuasão, de modo que os médicos pudessem se autodenominar "sem marca". As estratégias de envolvimento dos médicos pela indústria farmacêutica confirmam que as relações duplicam a possibilidade de desempenho inadequado com a prescrição comparada com profissionais que não têm esses vínculos. A propaganda de produtos farmacêuticos não tem nenhum sentido.