No início de abril, ZH participou de um curso de formação de propagandista para a indústria farmacêutica, que descreve ambiente de machismo e pressões para entrar e fazer carreira na atividade. Uma aluna do curso, ministrado pelo ex-propagandista e ex-gerente de multinacionais farmacêuticas, Alexandre Guzinski, escreveu seu relato.
Confira:
"Procurei o curso porque quero muito trabalhar no segmento propagandista. Sempre foi meu sonho. Mas, naquele dia, por várias vezes, pensei em levantar e ir embora. Me senti em um ambiente sujo, o tempo todo sendo ofendida e lembrada que era assim que ia ser para conseguir uma vaga.
O assédio moral e psicológico perdurou o curso todo. O desrespeito com o ser humano, o machismo, o assédio, as palavras de baixo calão. Eu pensava que era pegadinha. Mas só piorava e eu pensava: "nunca fiz uma entrevista assim! Não pode ser verdade!" Na primeira noite que voltei pra casa, comentei com meus pais e eles ficaram horrorizados. Pensei em não voltar. Só que pagamos caro pelo curso. Quem sabe era tudo mentira.
Dia seguinte. Novamente, uma enxurrada de ofensas contra a mulher. O tempo todo falando que suborno é normal, que é bom transar com mulheres de várias nacionalidades nas convenções dos laboratórios, que, sim, os laboratórios querem as magras. Gordinhas: deixem de ser relaxadas. Os médicos vão, sim, dar em cima de vocês e até na hora da entrevista ocorre isso.
Fiquei pensando: não é mais fácil na hora da entrevista conversarem e avisarem? Você quer passar por isso com os médicos? Porque pode acontecer e você vai ter que ter jogo de cintura. Continuei pensando. Onde vim parar. Depois desse curso, não enviei meu currículo para nenhum laboratório mais. Quando saiu a reportagem, me senti defendida, porque lá na hora pensei várias vezes "que mundo sujo este dos laboratórios".
Tudo que eu mais sonhei foi por água abaixo. No final, ele fala que a moça que está com ele é esposa dele. Aí fiquei mais horrorizada ainda. Os dois trabalham juntos e ela é coaching do curso.
Fico me perguntando: é isso mesmo na hora da entrevista? É esse tipo de pessoa que as indústrias querem? Jogo de cintura todo mundo tem que ter. Mas, como foi passado lá, é um antro de prostituição, exploração, propina, vender coisas para as pessoas ficarem doentes. O pior de tudo foi a humilhação moral, sexual e o preconceito com o corpo. Desde quando alguém é gordo porque é relaxado?"
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O que diz a legislação sobre a relação entre médicos e propagandistas
– A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na resolução 96/2008, que trata da propaganda médica, diz que "as empresas não podem outorgar, oferecer, prometer ou distribuir brindes, benefícios e vantagens aos profissionais prescritores ou dispensadores, aos que exerçam atividade de venda direta ao consumidor, bem como ao público em geral".
– Posteriormente, em 2009, uma instrução normativa liberou a entrega de "brindes institucionais, ou seja, que não veiculem propaganda de medicamentos", além de " artigos científicos, livros técnicos publicados, revistas científicas e publicações utilizadas para atualização profissional."
– Sobre o trabalho dos propagandistas, o órgão diz que os profissionais, nas suas ações de propaganda ou publicidade, "devem limitar-se às informações científicas e características do medicamento registradas na Anvisa" e que a "visita do propagandista não pode interferir na assistência farmacêutica, nem na atenção aos pacientes".
– Já o Código de Ética Médica veda aos profissionais "exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica".
– O código também proíbe os médicos de "deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais".