O tema esteve latente na literatura de Carlos Fuentes e em filmes como Um Dia sem Mexicanos (2004), de Sergio Arau, ambientado na Califórnia. Agora emerge por cima do muro de todas as hipocrisias e se manifesta em protestos crescentes. Há um claro agravamento do histórico ressentimento do México com os EUA, que ganha as ruas em manifestações cada vez mais frequentes. Ao ordenar a construção de um muro nos 3,2 mil km da fronteira entre os dois países, o novo presidente americano, Donald Trump, mal esquentou o primeiro assento do mundo e já reavivou antigas mágoas que remontam à primeira metade do século 19, em especial no Texas, e em outros Estados sulinos.
Trump não é político. Orgulha-se de certo pragmatismo tosco e direto sem quaisquer pruridos, em detrimento da necessária maleabilidade do homem público. Não se preocupa com as consequências de suas palavras. E os muros que separam esses dois perfis, o do empreendedor faca na bota e o do político, vão se mostrando na Europa, no Oriente Médio e na América do Sul.
Mas, especificamente no vizinho México, Trump vai cimentando entraves para a economia, a diplomacia e o meio ambiente, de forma rápida, intensa e concreta. É no México onde o muro fica mais visível, e não só fisicamente. Você sabia que a fronteira entre EUA e México tem ecossistema localizado entre dois biomas, com migrações de animais e aves entre o sul e o norte? Há ali diversos tipos de mamíferos, aves e plantas. O lugar é o habitat até do papa-léguas (lembram? bip, bip) e do cacto saguaro (o ambiente padrão do desenho animado).
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O papa-léguas é o bichinho dos nossos mais remotos afetos das manhãs sem internet, TV a cabo e celular. Será prejudicado em seu trânsito pela fronteira. Só que a tragédia ambiental não se limita a ele. Aquele pedaço árido e familiar da paisagem americana abriga ainda carneiros selvagens do deserto e pumas. Com o muro, serão reduzidas, além da mobilidade, as áreas de acasalamento. Para a espécie humana que se diz civilizada, os problemas são imprevisíveis em sua dramaticidade.
Trump diz que vai garantir empregos aos americanos. Sim, mas os EUA enviavam ao México multinacionais que costumavam empregar a população local sob baixos salários e condições precárias de trabalho. Foram várias as cidades, como Juarez e Tijuana, que se formaram em torno desses empreendimentos, em especial na fronteira, com urbanização acelerada, marginalização e tráfico de drogas, consequências perversas de um mal que se quer combater.
Disso resulta que, além da diminuição no comércio bilateral e do refluxo do que vinha sendo uma integração geralmente benéfica para os EUA, o muro tende a dividir aglomerações urbanas fronteiriças. E isso não se refere apenas a terras, mas a pessoas. Famílias devem ficar divididas pelo muro de Trump.
Os mexicanos com memória mais fresca pensam no quê? Como diz o historiador Leo Piltcher, “o primeiro censo norte-americano, feito em 1790, mostrava que os EUA tinham cerca de 2,3 milhões de quilômetros quadrados”. Diversas guerras e tratados depois, o país de Trump abocanha algo como 60% do vizinho de quem agora quer ficar apartado como se fossem todos os seus habitantes bandidos em potencial, entre traficantes e sequestradores. Hoje, os EUA são um colosso de 9 milhões de metros quadrados, incluindo o Alasca.
O muro parcial já está presente desde 1994 (curiosamente, ano em que se consolidou o tratado norte-americano de livre comércio, o Nafta) em 1,1 mil quilômetros, 33% da fronteira entre os dois países. Se for completado, a um custo entre US$ 12 milhões e US$ 15 milhões, percorrerá, sob o mando prático de Donald Trump, toda a extensão fronteiriça, com o valor possivelmente sendo cobrado do México na base de 20% sobre as exportações – essa é a meta.
O historiador mexicano Enrique Krauze, para quem “a ferida foi reaberta”, diz:
– A guerra de 1846, um imenso trauma nacional, já pertencia, para o imaginário mexicano, a uma espécie de pré-história.
São sentimentos que passam por retrocessos.
Não só sentimentos, como completa o também historiador mexicano Christian Ramírez, diretor da Coalizão de Comunidades Fronteiriças:
– É insensato que, em um mundo globalizado, vão se construir muros, e muito menos que um país vizinho tenha a obrigação de construí-lo.
São US$ 500 bilhões de trocas anuais entre os dois países e algo como 35 milhões de mexicanos vivendo em solo americano. Mas o muro vai além do dinheiro e dos imigrantes. Fomenta ressentimentos, prejudica até a fauna local, impõe retrocessos a progressivas aproximações históricas e, ao mesmo tempo em que assegura empregos para americanos, certamente diminui a influência internacional dos EUA.
Será um muro o símbolo desse estranho mundo em que nos tocou viver?