DOC
Nunca uma espécie que habita a face da Terra mudou, de forma tão radical e global, as condições no planeta quanto nós, seres humanos. Elevamos a temperatura e acrescentamos a rios, lagos e oceanos substâncias e sedimentos que não existiam. Somos comparáveis a uma “força tectônica”, como a que modificou a estrutura da Terra pouquíssimas vezes em bilhões de anos, a ponto de pesquisadores estarem propondo mudar o nome da época geológica atual: sairíamos do Holoceno, inaugurada com o fim da era glacial, e ingressaríamos no Antropoceno, a “época dos humanos”.
A proposta, do holandês Paul Crutzen, Nobel de Química em 1995, é defendida por Carlos Afonso Nobre, um dos principais cientistas brasileiros, doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), ex-presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e curador do Museu do Amanhã. O prédio impressionante no Rio, quase flutuando sobre a Baía da Guanabara e assinado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, põe o dedo em nossa consciência: que mundo deixaremos para nossos filhos, qual nosso papel na mudança no ambiente? Entre as alterações provocadas pelo homem está a elevação da temperatura do planeta:
– Estamos condenando populações que vivem em ilhas oceânicas a mudarem de lugar. Se (o aumento da temperatura do planeta) passar de 4ºC, cidades que conhecemos há séculos e milênios, na Europa e na Ásia, e mesmo as mais jovens das Américas, Rio de Janeiro, Nova York, deixarão de existir – afirma Nobre, nesta entrevista.
Leia mais
Andréa Pachá: "É um erro tentar fazer do tribunal uma clínica terapêutica"
Ney Matogrosso: "O Brasil era abertamente tolerante a todas as tendências. Não é mais"
Maria Laura Canineu: "Não há dúvida de que houve uma piora desde o massacre do Carandiru"
O cientista pesquisa os gases que provocam o efeito estufa desde os anos 1980. Climatologista, Nobre é o único brasileiro no grupo de trabalho que estuda, junto à comunidade científica mundial, a formalização da época do Antropoceno. Na entrevista a seguir, ele fala sobre os efeitos da ação do homem na Terra; o ceticismo de parte dos pesquisadores, em sua opinião, potencializado pela indústria de combustíveis fósseis; a luta contra o aquecimento global em tempos de Donald Trump na Casa Branca – os EUA são, junto com a China, um dos maiores poluidores mundiais – e sobre investimentos em ciência no Brasil.
A ideia do antropoceno defende que o ser humano alterou tanto as condições atmosféricas e ambientais do planeta Terra que estamos vivendo em uma nova época geológica. Qual o tamanho do estrago?
Nenhuma espécie desde que existe vida aqui – a primeira delas as cianobactérias nos oceanos, há 3 bilhões de anos – conseguiu transformar o ambiente, de forma global, em tão pouco tempo. Isso fez com que o professor Paul Crutzen, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Química em 1995, propusesse que somos a causa do surgimento de outra época geológica. Estamos há 12 mil anos em uma era que os geólogos chamaram de Holoceno, em que o clima relativamente ficou estável.
Desde que existe o Homo sapiens, esses foram os 12 mil anos mais estáveis. Isso fez com que, pela primeira vez, os humanos pudessem estabelecer assentamentos. Antes, eram nômades. Com isso, houve o desenvolvimento da agricultura e das civilizações. Os geólogos dão nomes para as eras em cima da característica dos sedimentos, o material biológico carregado pelos rios, depositado no fundo de oceanos e lagos. Eles começam a ver certas características biológicas fósseis nesses sedimentos e, com base nisso, concluem: “Durante essa época aqui os sedimentos foram dessa natureza, essas espécies existiam centenas de milhões de anos atrás nesse registro fóssil, já nessa camada de sedimentos, deixaram de existir”.
E o que podemos esperar dessa nova era? Episódios climáticos extremos?
Se uma civilização futura olhar para esses sedimentos, irá ver que, de uns 200 anos para cá, são totalmente diferentes em todos os aspectos. Vamos supor que a espécie humana desapareça e algum disco voador, outra espécie, comece a fazer a reconstrução do tempo, daqui a alguns bilhões de anos. Eles falariam: “Nessa época aqui, alguma coisa diferente estava acontecendo nesse planeta...” Vão começar a olhar os registros: “Olha, tem uns negócios aqui...” Vão fazer a análise química e ver que é plástico. Isso nunca existiu antes. Vão ver também que há uns isótopos radioativos do carbono 14 que não existiam antes. É o resultado dos isótopos radioativos introduzidos pelo homem com as explosões nos testes nucleares, nos anos 1940, 1950, 1960. Foram banidos depois, mas deixaram rastros.
Essa modificação foi chamada antropoceno: “ceno”, época em grego, porque é a época do homem, do “antropo”. Esse conceito ficou muito poderoso. A sociedade mundial de geólogos criou um grupo de trabalho e está para normatizar que estamos em uma outra época geológica. Isso deve ocorrer em uma reunião daqui a três anos. Há uma discussão metodológica, se começou em 1945, quando tem uma marca muito poderosa, o começo dos testes nucleares, ou se foi quando começou a aparecer o plástico. Nós nos tornamos uma força tectônica equivalente às forças geológicas que causaram grandes mudanças de épocas e eras geológicas, como o vulcanismo, os movimentos das placas tectônicas, os terremotos e as grandes extinções de espécie.
O senhor afirmou em uma entrevista para a emissora alemã Deutsche Welle que esses eventos extremos chegaram mais rápido do que o esperado. Chegamos a um ponto em que não adianta mais reduzir o aquecimento global?
O ponto de retorno seria na geração dos meus pais, nas décadas de 1960, 1970. Se essa geração tivesse tido a consciência que nossa geração tem hoje, dava praticamente para não afetar muito. Se diminuíssem as emissões (de gases poluidores) ou se escolhessem outro modo de desenvolvimento, o impacto no ambiente seria pequeno, e o planeta voltaria a seu estado anterior. Já passamos desse ponto.
A Convenção do Clima (das Nações Unidas) exige esforço gigantesco para que o aumento da temperatura do planeta fique abaixo de 2ºC. Já temos 1ºC. E o ponto de não retorno a 1,5ºC é certo que já atingimos, porque com a quantidade de gases do efeito estufa que lançamos, só o que está na atmosfera garante isso. Hipoteticamente, se parássemos de emitir hoje, a temperatura subiria a 1,5ºC. Não dá para diminuir abaixo disso. E todos os esforços que o acordo de Paris clama são para não deixar passar de 2ºC, porque haveria consequências catastróficas. As geleiras da Groenlândia e da Antártica ocidental derreteriam.
Isso significa o aumento do nível do mar de 10 a 15 metros em mil a 2 mil anos. Pode parecer distante, mas acontecerá. Então, em 500 anos, podemos ter entre três a quatro metros de aumento no nível do mar. Com isso, você está condenando populações de ilhas oceânicas a se mudarem. Os países-ilha deixarão de existir. E vão ter de ser reacomodados. Isso é para 2ºC. Se passar de 4ºC, o aumento do nível do mar pode chegar a 15 metros. Isso significa a zona costeira mudar totalmente, e cidades que conhecemos há séculos e milênios, na Europa e na Ásia, e mesmo as mais jovens das Américas, como Rio de Janeiro, Nova York, deixarem de existir como as conhecemos.
A Holanda, nesse cenário, deixa de existir. Será oceano. Vietnã, 80% será oceano. É quase como criar Atlântida (o lendário continente submerso): as pessoas vão fazer viagens submarinas para ver o que foi um dia Nova York, a zona sul do Rio. Se as mudanças climáticas continuarem, mesmo com 2ºC, estima-se que desaparecerão da face da Terra entre 10% a 15% de todas as espécies. Cerca de 95% dos recifes de corais desaparecerão dos oceanos tropicais.
Isso é o que dá o sentido de urgência. O aumento de 1,5ºC não dá para recuperar. O de 2ºC, teríamos que reduzir as emissões praticamente a zero até 2050 e depois estabilizar em zero até o final do século. No século 22, teríamos de passar a ter emissões negativas, ou seja, retirar gás carbônico da atmosfera. Mas isso é teórico, estamos longe disso. Na prática, estamos aumentando emissões.
A que o senhor atribui que tantos não acreditem no aquecimento global?
Raramente há um assunto científico em que exista tanto consenso quanto o aquecimento global. O percentual de cientistas que não têm dúvidas de que é a ação humana que causa o aumento da temperatura, com graves consequências, passa de 98,5%. Isso é raríssimo em qualquer área da ciência. Na medicina os consensos são muito menores. Por exemplo: o vírus da zika causa má-formação cerebral em fetos. Quantos cientistas da área médica endossam essa tese? Não passa de 70%.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) fez um alerta máximo, todo mundo está preocupado, mulheres evitam engravidar em regiões com a epidemia, isso inclusive vai ter efeito demográfico nessas cidades. A proteção do clima global exige criar uma economia sem combustíveis fósseis, e os interesses econômicos afetados são muito grandes. A indústria fóssil responde por quase 20% do PIB mundial. É poderosíssima, e mesmo que dure só mais 20 anos, quer sobreviver e vender petróleo, carvão e gás natural e ganhar dinheiro.