
– Está tudo muito estranho. Nos Estados Unidos, aquele maluco ganhou a eleição.
– Meu Deus. E vai acabar respingando aqui, né?
O diálogo entre duas passageiras de um lotação, no início da tarde desta sexta-feira, em Porto Alegre, sintetiza a apreensão que ultrapassou as fronteiras do país americano após a eleição de Donald Trump.
A surpreendente vitória do republicano é, segundo analistas, reflexo de uma onda mundial de conservadorismo e de um movimento antiglobalização, impulsionado pelo Brexit – a saída do Reino Unido da União Europeia, aprovada em um referendo em junho.
– Há uma inclinação profunda à direita, inclusive no campo da disputa macroeconômica pelo destino do capitalismo praticado no Ocidente. Essa disputa se dá entre uma política agressivamente neoliberal e uma política antiglobalização, que está vencendo com um populismo de direita. É o caso europeu e é o caso de Trump – avalia o cientista político Bruno Lima Rocha, professor de relações internacionais da Unisinos.
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Quem ganha e quem perde com a vitória de Donald Trump
A vitória do magnata americano pode dar um fôlego para as candidaturas de líderes de extrema direita, como a da francesa Marine Le Pen, da Frente Nacional. No Brasil, quem comemorou a eleição de Trump foi o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que pretende disputar a Presidência da República. Em sua conta no Twitter, o parlamentar escreveu que, em 2018, "será o Brasil no mesmo caminho”.
– É possível que esse discurso ultraconservador, escrachado, que beira ao humor, do desrespeito total e completo a outros seres humanos ou a outros sistemas de crença possa ser uma rastilho de pólvora. Então, abre um precedente – diz Rocha.
Na avaliação do cientista político Sérgio Abranches, a vitória de Trump decorreu de um "brutal realinhamento" do eleitorado norte-americano. E uma das razões para essa mudança – áreas que eram tradicionalmente democratas votaram no candidato republicano – é que "o eleitor que virou a favor de Trump é o eleitor que está frustrado, machucado, ressentido com a crise que vem desde 2008".
Conforme Abranches, a economia dos EUA está se recuperando, mas com mudanças que produziram um cinturão de desempregados, de indústrias quebradas e de cidades em decadência em regiões que eram predominantemente democratas. Trump conseguiu captar e traduzir esse ressentimento, a começar pelo slogan: Fazer a América grande de novo.
– Os EUA não são diferentes do resto do mundo. A democracia está em crise no mundo inteiro. O Trump foi assim uma espécie de Brexit americano: a surpresa do voto contrário a todas as expectativas e para uma saída mais radical, uma ruptura com o establishment, o status quo.
Alçado ao poder por um eleitorado predominantemente branco, masculino, heterossexual e religioso, Trump pode redefinir o padrão das relações internacionais dos EUA, segundo o cientista político Pedro Arruda. Para o professor da PUC-SP, enquanto Hillary Clinton era a candidata do establishment, o bilionário, que é um novato na política, traz algumas incertezas e causa "mais apreensão do que expectativa".
– Trump não tem apoio nem mesmo entre líderes do seu próprio partido. De qualquer maneira, nos próximos dois anos, ele vai poder aprovar muitas medidas, pois tem maioria. É mais provável que nesse começo de governo ele adote uma postura isolacionista, se afastando até da União Europeia, e discuta assuntos domésticos, como imigração e desemprego.
Promessas de campanha podem não ser cumpridas
Os analistas acreditam que os eleitores de Trump podem acabar frustrados, pois consideram difícil que ela possa cumprir suas promessas de campanha. Muitas das ações exigem um grande aporte de recursos de um governo que já está no limite do endividamento.
Há consenso entre os especialistas de que o futuro governo Trump ainda é uma incógnita. O bilionário pode tanto se manter na mesma linha da campanha – nacionalista e populista – como se reinventar enquanto presidente, pois, levando em conta a sua inexperiência política, vai aprender na prática. Mas, enquanto Trump não disser a que veio, a incerteza deve manter mercado instável.
– Trump se soma a outra série de incertezas que a gente está vivendo nesse momento e que estão fazendo com que essa conjuntura seja de muito alto risco, muita instabilidade. Você tem a mesma perplexidade, a mesma incógnita com relação ao que vai acontecer com o Brexit, o tratado de paz com as Farc na Colômbia, as próximas eleições europeias. Isso cria muito medo, ansiedade e apreensão, que são um alimento para o conservadorismo. Portanto, de imediato, a eleição do Trump complica um quadro global que já estava complicado – avalia Abranches.
*Zero Hora