Recentes assassinatos praticados em locais de grande circulação de Porto Alegre, como no aeroporto e em um supermercado, demonstram como o descontrole do Estado sobre facções criminosas vem afetando o dia a dia da população.
A promotora Lúcia Helena Callegari informou, nesta segunda-feira, que o assassinato de Marlon Roldão Soares no saguão do Salgado Filho foi motivado pela guerra entre grupos ligados ao tráfico – e não por motivação passional como alegado pelo autor confesso. Especialistas sustentam que é preciso restringir o poder dessas facções para recuperar um mínimo de segurança nos espaços públicos.
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Em entrevistas concedidas ontem à Rádio Gaúcha, Lúcia e o chefe da Polícia Civil, delegado Emerson Wendt, reconheceram a dificuldade estatal em fazer frente aos bandos.
– Infelizmente, estou pessimista (...). Enquanto estivermos com esse sistema prisional como está agora, de onde sabemos que as ordens estão sendo dadas para a rua, de grandes estabelecimentos com facções formadas e unidas em uma mesma região (...), como um grande escritório do crime, enquanto não retomarmos o poder, não tenho esperança – desabafou a promotora.
Wendt observou que as mortes em pontos anteriormente considerados seguros não surpreende mais os policiais:
– Tem sido rotina, infelizmente, em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Não nos causa necessariamente surpresa.
Na semana passada o empresário Marcelo Oliveira Dias, 44 anos, foi morto ao ser confundido com um traficante no estacionamento do supermercado Zaffari na Avenida da Cavalhada. Ele estava no carro com a filha de quatro anos. Profissionais ligados à segurança sustentam que a resignação precisa dar lugar a ações concretas do poder público para evitar casos como esse. Medidas mais imediatas devem restringir a comunicação dos líderes das facções, que ordenam crimes via telefone celular de dentro das celas (veja quadro). Só que soluções mais eficazes dependeriam de políticas mais incisivas, que deveriam ser alinhavadas o quanto antes em Plano Estadual de Segurança Pública.
Para o coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), Eduardo Pazinato, esse plano deveria focar três itens: combate a homicídios, a outros crimes violentos, como roubo de carro, e a violência doméstica. A reorganização do sistema prisional seria necessidade comum a todos esses pilares.
– Tínhamos 29 mil presos no começo de 2015, agora já são mais de 35 mil. Se continuarmos focando em prender o pequeno traficante em vez do crime organizado, aumentará a falta de vagas e a beligerância das facções. As polícias prendem mais, mas aumentam homicídios, latrocínios e crimes violentos – observa Pazinato.
O juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, sustenta que os presídios perderam a função de proteger a sociedade. Ele defende medidas imediatas como o bloqueio de sinais de celular, mas sustenta que uma solução definitiva é mais complexa:
– Hoje, prendemos o traficante e apreendemos a droga, mas o ponto de venda continua funcionando. Não adianta prender um traficante e deixar que outro assuma. É preciso levar saúde, cultura e educação para lá.
MEDIDAS CONTRA AS FACÇÕES
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CURTO PRAZO
Bloqueio de sinal
O telefone celular segue como uma das principais ferramentas de comunicação dos apenados no Estado, servindo inclusive para ordenar mortes fora dos presídios. Discutida há muito tempo, a implantação de bloqueadores de sinal ainda não virou realidade. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em agosto, que é inconstitucional os Estados obrigarem as operadoras a cortar o sinal de celular nas regiões de presídios, mas nada impede que cada um instale os equipamentos por sua conta.
Detector de metais
A implantação de aparelhos para detectar metais como celulares poderia dificultar a comunicação de dentro para fora dos presídios, além de coibir a entrada de armamentos. Mas sua eficácia é limitada e deve vir combinada de outras ações de controle. Segundo o juiz Sidinei Brzuska, a existência de equipamentos como Raio-X e scanner corporal na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) não tem conseguido evitar entrada de aparelhos de telefone no local.
Transferências de presos
Realocar líderes de grupos criminosos para outros Estados é medida de baixo custo e rápida aplicação, mas especialistas sugerem que seja tomada com cuidado. Segundo o consultor em segurança pública Eduardo Pazinato, isso poderia afetar o gerenciamento do atual sistema prisional gaúcho – em que os próprios presos regulam o funcionamento de muitas galerias. Brzuska avalia, ainda, que é medida paliativa no sentido de que os detentos acabam retornando depois de algum tempo.
Ação contra finanças
Outra das medidas sugeridas é ampliar a ênfase das investigações sobre recursos econômicos das facções criminosas e tentar asfixiá-las combatendo a lavagem de dinheiro – que pode envolver aquisição de imóveis, empresas de fachadas e outras formas de legitimar o dinheiro obtido ilegalmente. Sem recursos, a capacidade de cooptação e articulação das gangues fica prejudicada.
MÉDIO PRAZO
Plano Estadual de Segurança
Especialistas sugerem a formalização de abrangente Plano Estadual de Segurança Pública, que definiria o foco das ações contra o crime. Eduardo Pazinato aponta que o plano gaúcho deveria se concentrar em três eixos, tendo a melhoria do sistema prisional como traço comum a todos:
– Redução dos homicídios
– Ações contra crimes violentos (foco em roubo de carro e a pedestres, que eventualmente levam a latrocínio)
– Ações contra violência doméstica
Estudo e trabalho
A oferta de generalizada de estudo e trabalho nas cadeias é um caminho para reduzir o poder das facções, embora seja uma medida difícil de implantar em prazo rápido. A aprendizagem e a prática de um ofício podem facilitar o encaminhamento para um emprego depois de cumprir pena e combater a influência dos grupos criminosos após a soltura do detento.
Mudança de foco
Hoje, segundo Eduardo Pazinato, entre 8% e 12% das vagas em presídios costumam ser ocupadas por homicidas, que deveriam ser o foco da segurança pública gaúcha. A sugestão é que o Estado concentre forças em investigar, prender e condenar autores de crimes violentos, em vez de pequenos traficantes, por exemplo. A superlotação carcerária resultante alista mais pessoas para as facções nos presídios.
Novas vagas
É urgente melhorar a infraestrutura do sistema prisional gaúcho com a abertura de novas vagas. O presídio de Canoas tem prédios prontos à espera de obras complementares e de agentes penitenciários, por exemplo. Até ontem, 13% das 2,8 mil vagas haviam sido entregues – quando o déficit no Estado alcançava 11 mil vagas. A falta de condições adequadas aumenta o poder das facções no interior de presídios como o Central, em Porto Alegre.
LONGO PRAZO
Ações sociais
A medida mais eficaz para desidratar as facções é impedir que recrutem novos adeptos. Para isso, além de repressão policial, é fundamental o Estado implantar políticas públicas às populações mais vulneráveis – combinando oferta de trabalho com educação, assistência social, lazer e outras formas de marcar presença em áreas conflagradas. Sem isso, o crime seguirá arregimentando novos adeptos.
Apoio a egressos
O Estado precisa disputar com as facções os presos que deixam as penitenciárias, onde se vinculam a determinado grupo criminoso – e que, por vezes, executam na rua as ordens que partem de dentro das cadeias. Para isso, é preciso criar programas que facilitem o acesso a emprego com mais eficiência, oferecer programas de qualificação e outras formas de apoio para impedir que o egresso do sistema caia em reincidência.
Fontes: sociólogo Juan Fandino Marino, consultor em segurança pública Eduardo Pazinato e juiz Sidinei Brzuska