
Questão essencial para a saúde financeira do setor público brasileiro, a renegociação da dívida dos Estados com a União entrará na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) na sessão desta quarta-feira, a partir das 14h. De um lado, unidades à beira da falência, com atrasos nos pagamentos de salários, casos do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro. De outro, o endividado governo federal, que enfrenta recessão e uma das maiores crises econômicas da história do país.
A decisão sobre o futuro dos contratos ficará sob responsabilidade dos 11 ministros da Corte depois de anos de negociações frustradas entre governadores e o Palácio do Planalto – um pedido de vista pode levar ao adiamento. As duas possibilidades postas à mesa são antagônicas. Uma autorizaria a adoção de juro simples para recalcular descontos retroativos. Com isso, RS e SC, por exemplo, já teriam quitado integralmente a dívida. O governo da presidente Dilma Rousseff diz que a tese dos Estados traria rombo de R$ 313 bilhões, em valores de 2013, e pleiteia a manutenção do juro composto – na terça-feira à noite, o Ministério da Fazenda atualizou as perdas para R$ 402 bilhões.
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De largo alcance, a decisão preocupa até mesmo o vice-presidente Michel Temer, que poderá herdar o comando do país nos próximos dias se avançar no Senado o processo de impeachment de Dilma. Interlocutores de Temer procuraram ministros recentemente para tentar desarmar a chamada "bomba fiscal".
Dez Estados chegam à sessão com liminares vigentes que os autorizam a pagar as parcelas com base no juro simples, conforme previsão das leis 148/2014 e 151/2015. Essas decisões proibiram a União de aplicar sanções como o bloqueio de contas, o que vinha acontecendo com o Rio Grande do Sul. Após as derrotas nas liminares, o Planalto elevou o tom do discurso. Passou a apontar que o juro simples causará severo impacto em período de crise. Outro argumento é de que esse método poderá gerar insegurança jurídica, já que a maioria dos contratos feitos pelo mercado adotam o modelo composto, que implica juro sobre juro.
– A maneira correta de fazer isso (renegociação) é adotar interpretação dos contratos que não crie incerteza jurídica para contratos privados, que não crie desequilíbrio federativo em que os Estados mais endividados, cuja folha de pagamento cresceu mais, sejam mais beneficiados do que Estados que fizeram seus ajustes – declarou o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, em recente reunião com o relator do caso no STF, Edson Fachin, e governadores.
A análise de Barbosa tem a simpatia de Fernando Ferrari Filho, professor de Economia da UFRGS.
Para ele, a renegociação deve se limitar a deságios em troca de medidas de controle de gastos e à redução do percentual de comprometimento da receita com o pagamento da dívida, atualmente fixado em 13%:
– Se analisarmos estritamente questões técnicas e econômicas, não há possibilidade de o STF atender ao pleito dos Estados. Via de regra, qualquer negociação usa o juro composto. Mudar isso criaria um círculo vicioso em que nenhum contrato mais seria respeitado.
O governador José Ivo Sartori passou a terça-feira em reuniões com ministros da Corte para apresentar argumentos. A justificativa é de que o Estado já pagou mais do que devia originalmente, mas o débito continua a crescer em decorrência dos juros. Sartori diz ainda que o Piratini apenas quer que seja aplicada a determinação das leis 148/2014 e 151/2015, que obrigam a adoção do juro simples. O governo federal, percebendo a iminência do rombo, editou decreto posterior para regulamentar as normas. No texto, retomou a lógica do juro composto. Uma das preocupações do governo gaúcho é o contorno político do tema.
– Acreditamos bastante na robustez da nossa tese, mas existem questões que podem interferir. A União fala em rombo de R$ 313 bilhões como se fosse algo imediato, mas, na verdade, isso seria diluído em um período de 12 a 22 anos, algo em torno de R$ 20 bilhões ao ano. Isso representa 0,7% do orçamento da União. Esses argumentos vieram com o viés de criar um clima de terrorismo – reclama Euzébio Ruschel, procurador-geral do Estado, que fará sustentação oral no STF ao lado de Santa Catarina e Minas Gerais.
O consultor econômico Raul Velloso indica que, com a adoção de juro simples, a União herdaria um pedaço da dívida que é dos Estados. Para fazer frente, teria de ampliar o superávit primário. Velloso discorda da tese de que o modelo pleiteado pelos governadores causaria insegurança jurídica:
– Isso é uma questão entre governos. Não tem nada a ver com o mercado. Isso não é argumento.
Não está descartada a possibilidade de que os ministros do STF tentem chegar a uma alternativa mais equilibrada e menos dolorosa para ambas as partes.
Solução para o caixa, diz Feltes
Secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, Giovani Feltes avalia que a eventual confirmação do juro simples no cálculo dos descontos retroativos no estoque da dívida com a União equacionaria significativa parcela dos problemas financeiros do Estado. Ele viaja nesta quarta-feira a Brasília para acompanhar a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que irá deliberar sobre o caso.
– Resolveria a metade dos nossos problemas de rombo mensal. Aliada a ações que estamos tomando e junto da saída da recessão e retomada do crescimento da economia, seria uma medida que nos aproximaria mais rapidamente do equilíbrio – afirma.
Feltes destaca que o Rio Grande do Sul tem registrado mensalmente déficit de cerca de R$ 550 milhões, o que leva ao parcelamento de salários. Com o juro simples, o Estado teria quitada a dívida com a União. Isso o livraria de pagar as prestações mensais de, aproximadamente, R$ 270 milhões.
– Estou otimista porque a nossa tese é vigorosa. O que queremos é somente o cumprimento do que está determinado nas leis 148/2014 e 151/2015 – diz.
Histórico de polêmicas
Em 1998, a União assumiu dívidas dos Estados e renegociou para que pagassem a longo prazo, em contratos de 30 anos. Se, ao final do período, ainda existisse resto a pagar, o financiamento teria continuidade por mais 10 anos. Os valores eram corrigidos pelo IGP-DI acrescido de juro de 6%. A parcela não poderia exceder 13% da receita corrente líquida.
Estudos do Ministério da Fazenda dizem que essa fórmula foi interessante somente no início dos contratos. Depois, com as variações econômicas e a crise de 2008, se tornou desfavorável. A partir disso, os governadores começaram a pressionar por renegociação.
Dos debates, surgiu a lei complementar 148/2014, que estabeleceu 1º de janeiro de 2013 como nova data de corte para cálculos de descontos retroativos. A norma mudou os indexadores da dívida: o IGP-DI foi trocado pelo IPCA e o juro de 6% caiu para 4%. A medida também previu que, para compensar desequilíbrios, seria concedido desconto no saldo devedor, entre 1998 e 2013, pelo juro simples.
Depois, veio a lei 151/2015, que ratificou os itens da norma anterior e tornou o desconto, que era facultativo, obrigatório.
Depois de as duas leis serem sancionadas, o Planalto publicou o decreto 8.616 para regulamentar as leis 148/2014 e 151/2015. O documento autorizou o Ministério da Fazenda a adotar novas condições nos refinanciamentos das dívidas. Em linhas gerais, retomou a tese do juro composto, anulando o cálculo que geraria economia aos Estados. No caso do Rio Grande do Sul, em valores de dezembro de 2015, o estoque da dívida, de acordo com as regras do decreto, cairia de R$ 51,6 bilhões para R$ 46 bilhões. Pelas definições das leis anteriores, o saldo do Rio Grande do Sul estaria zerado.
Para o governo gaúcho, o Ministério da Fazenda faz projeção equivocada ao dizer que, com o juro composto, a dívida cairia de R$ 51,6 bilhões para R$ 46 bilhões. Isso porque a linha de corte de cálculo de desconto é janeiro de 2013, quando a dívida era de R$ 42,9 bilhões.
Em meio à disputa, o governo federal apresentou nova proposta, em debate na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado: o projeto de lei complementar 257/2016. Propõe o alongamento das dívidas em duas décadas e prevê incidência de desconto de 40% nas parcelas mensais, o que seria válido por dois anos.
No caso do Rio Grande do Sul, resultaria em economia mensal de R$ 150 milhões. Os valores teriam de ser pagos no futuro. Os Estados não aceitam a proposição e alegam que as contrapartidas exigidas pela União, como controles severos de gastos e de salários de servidores, inviabilizariam as gestões estaduais.
O que o STF terá de decidir é se deverão prevalecer os ditames das leis 148/2014 e 151/2015, que favorecem os Estados, ou o decreto 8.616, benéfico à União. Não está descartada a possibilidade de a Corte tentar intermediar um novo acordo, que contemple as duas partes de forma mais equilibrada.