Há 30 anos, quando se falava em violência, o que vinha à mente das pessoas era a figura do dragão da inflação que asfixiava a economia e engolia os salários. Grade nas portas e janelas era coisa de presídio. Tiroteio à luz do dia só se via no cinema. Nas ruas, o perigo eram os batedores de carteira e golpistas de boa lábia que aplicavam o conto do bilhete.
A criminalidade mais aguda se concentrava em assaltos a bancos, obrigando as agências a colocar segurança na porta. Mortes ocorriam na ponta da faca, provocadas por desavenças entre marido e mulher, amantes, irmãos, vizinhos e amigos de bar. O comércio de entorpecentes se alicerçava na maconha, e apreensão de qualquer quantia era notícia.
- Se pegasse cem gramas ia para a capa dos jornais - lembra o delegado Cléber Ferreira, 65 anos, diretor da Delegacia Regional da Polícia Civil em Porto Alegre.
- O Tribunal condenava quem portava maconha se a pessoa não conseguisse provar que a droga era para consumo próprio - recorda o advogado Décio Antônio Erpen, 79 anos, desembargador aposentado no Rio Grande do Sul.
No final de 1986, a descoberta de duas redes de traficantes no Estado com conexões em São Paulo e Mato Grosso do Sul para vender a universitários demonstrava a popularização da cocaína, até então consumida apenas pela classe A.
Uma década depois, criminosos fortaleceram o poder, articulados em facções. Rebeliões em presídios sacudiram o Estado, levando a Brigada Militar para dentro das cadeias na tentativa de aplacar motins e mortes, diminuindo seu efetivo nas ruas. Com táticas semelhantes a de bandidos cariocas, quadrilhas armadas com fuzis começaram a atacar carros-fortes nas estradas.
Nas cidades, ladrões invadiam bancos, ignorando a presença de vigilantes e câmeras. As agências foram obrigadas a instalar portas giratórias com detector de metais, e, como resposta, quadrilhas "importaram" outra modalidade do Rio de Janeiro, o sequestro relâmpago. Motoristas eram abordados e levados para retirar dinheiro em caixas eletrônicos.
A solução encontrada foi limitar valores de saques e horários das salas de autoatendimento. Quatro anos depois, assaltantes passaram a invadir casas de gerentes de banco e familiares transformados em reféns, até que facilitassem o ingresso e o roubo nas agências.
Em meio à escalada da violência, uma nova droga surgiu para dizimar famílias, provocar uma endemia social e dar fôlego à criminalidade: o crack. A pedra desembarcou na Serra, em 2004, impulsionou o comércio de entorpecentes em larga escala e o consolidou como carro-chefe da criminalidade. Traficantes disputavam a bala com rivais o domínio de bocas de fumo, mudando o perfil dos homicídios - à época, 47% dos assassinatos estavam relacionados a essas desavenças.
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A Polícia Civil tentava, em vão, inibir a proliferação dos entorpecentes, até com blitze em parques e praças. A Secretaria de Segurança Pública se obrigou a criar um setor específico para combater as drogas, o Departamento Estadual de Combate ao Narcotráfico, enquanto traficantes gaúchos radicados no Paraguai intensificavam remessa de fuzis e cocaína para o Estado. Em troca, carros roubados no Brasil chegavam a Assunção para serem legalizados. Da frota paraguaia de 400 mil veículos, 180 mil eram de procedência duvidosa.
O final de semana de Ano-Novo de 2006 dava uma mostra da escalada da brutalidade. Foram 20 assassinatos, incluindo o de um estudante de 20 anos, em Santo Ângelo, nas Missões, morto por assaltantes que levaram o automóvel dele para cometer furtos. O caso apontava para dois novos vértices da insegurança.
O primeiro: o avanço da criminalidade em áreas rurais e pequenas comunidades do Interior, influenciado pela fragilidade de estrutura e de pessoal da Brigada Militar - há mais de uma década, o número de PMs despencava em queda livre, motivada, em parte, por plano de demissão voluntária.
O segundo: o crescimento desenfreado dos roubos de carros para desmanches e clonagem, fazendo vítimas até policiais, e com resultados trágicos, elevando os números dos latrocínios (roubo com morte).
O momento se mostrava especialmente delicado. O Supremo Tribunal Federal tornava menos rigorosa a punição para autores de crimes hediondos. Três anos antes, alteração na Lei de Execução Penal criou facilidades para condenados progrediram para o regime semiaberto. Enquanto criminosos dentro das cadeias extorquiam famílias com o golpe do falso sequestro, apenados fugiam em massa de albergues para cometer estupros em série e ataques a blindados na Serra.
A situação deixava autoridades gaúchas atônitas. Nos gabinetes da SSP, se admitia que não havia plano para conter os roubos de veículos. Nas ruas, a polícia corria atrás de ladrões de automóveis e tentava conter assaltos a carros-fortes, lideradas por José Carlos dos Santos, o Seco.
Na tentativa de prendê-lo, considerado foragido número um, policiais civis mataram a tiros uma criança de três anos, em um camping no Litoral Norte. Seco foi capturado sete meses depois. Em novembro passado, a polícia deflagrou uma operação para tentar reduzir o poder do assaltante de dentro da cadeia.
Nos últimos 10 anos, a criminalidade ganhou fôlego por conta do colapso carcerário. A inércia do Estado em erguer unidades prisionais e investimentos equivocados no regime semiaberto geraram superlotação com consequências nefastas à segurança pública, e até motivo de vergonha mundial, por causa do Presídio Central de Porto Alegre. Com presos amontoados em pavilhões em ruínas, a cadeia é apontada como a pior do Brasil e, em 2013, se torna pivô de denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, organismo ligado à Organização dos Estados Americanos, em 2013.
Sem servidores suficientes e precários mecanismos de controle, as cadeias ganharam status de escritórios do crime organizado com centenas de apenados comandando de trás das grades, via celular, venda de drogas, roubos e assassinatos nas ruas. Oito em cada 10 homicídios em Porto Alegre eram provocados por guerras entre narcotraficantes.
O telefone virou o objeto de maior cobiça da bandidagem, tanto para trocar por drogas quanto para mandar para dentro das cadeias. Mesmo pedestres que evitam portar pertences valiosos como precaução contra assaltos, passaram a ser roubados por causa do celular, cujo valor em dinheiro as vítimas jamais levariam na carteira.
A falta de espaços e a insegurança em albergues levaram juízes a interditar esses estabelecimentos e a liberar milhares de homicidas, ladrões e traficantes para cumprir pena em casa.
- Sem espaços nas cadeias, o juiz tem de fazer uma seleção dos mais perigosos que devem ficar na cadeia. Antigamente não tinha essa crise prisional. Por isso, não tinha o prende e solta - analisa Erpen.
Em âmbito nacional, uma tentativa de reduzir a lotação nas cadeias veio com a Lei 12.403 em 2011 que criou nove medidas alternativa à prisão preventiva. Em paralelo a isso, quadrilhas intensificaram novas modalidades de ataques a bancos. Transformaram moradores de pequenas cidades em escudo humano para roubos em agências e, a partir de 2010, incrementaram furtos com maçarico e explosões com dinamite.
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