Por volta das 16h do dia 5 de novembro, quando a Barragem do Fundão começou a cuspir lama, o aposentado José do Nascimento de Jesus tinha casa, carro, uma pequena loja de artesanato e vestuário, um violão de estimação, fotos de família e tudo mais que acumulou ao longo de uma vida inteira.
Ao cabo de alguns segundos, viu-se apenas com uma bermuda, um par de chinelos e um telefone celular. Mais nada. Hoje, ao lado da mulher, Maria Irene de Deus, 76 anos, e de outras centenas de sobreviventes da enxurrada de lodo abrigados no município de Mariana (MG), junta forças para começar uma nova vida aos 70 anos.
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Inicialmente recolhida a um ginásio, agora a maior parte dos cerca de 800 ex-moradores de localidades atingidas em cheio pela tragédia, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, refugia-se em hotéis pagos pela mineradora Samarco. Esperam ser deslocados, nas próximas semanas, para casas alugadas na região.
O reinício, porém, é dificultado pelo nível de devastação imposto pela onda de rejeitos: os locais em que viviam, suas casas, seus antigos trabalhos não existem mais. Mais do que seus pertences, suas histórias de vida foram soterradas. Por isso, muitos custam a aceitar que o passado foi varrido para sempre.
- Quem sabe a nossa casinha esteja debaixo da lama. Vai ver que a lama passou por cima, e ela está lá embaixo. Pode ter sobrado alguma coisa... - sussurra Maria ao pé do ouvido de José, no corredor diante do quarto 25 do Hotel Providência, onde passaram a morar por tempo indeterminado.
- Deixa disso, mulher. Não sobrou nada. Nossa casa foi levada com tudo. Nada ficou no lugar. Bento Rodrigues não existe mais e nunca mais vai existir - responde ele.
Ao lado da mulher, Maria Irene, João Nascimento de Jesus (centro) toca músicas ao violão para disfarçar a tristeza pela destruição de "seu paraíso"
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS
Bento Rodrigues, o epicentro da tragédia, localizado a 23 quilômetros da sede municipal, é o nome oficial do que Jesus costumava chamar de "meu paraíso" - o pedaço de terra onde era conhecido por todos, tocava seu violão e esperava passar seus últimos anos em sossego. Foi expulso de lá pela onda gigantesca de rejeitos minerais que serpenteou morro abaixo até engolir o subdistrito de Mariana.
- Corremos e pegamos carona no último carro que deixou a baixada - conta o aposentado, que comprou um violão novo e disfarça a tristeza tocando músicas ao anoitecer.
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A empresária Sandra Dometirdes Quintão, 43 anos, escapou com a filha Ana Amélia, dois anos. Ela vivia e trabalhava em um casarão histórico que serviu de refúgio a tropeiros, décadas atrás, foi moradia de seus pais e, até o começo do mês, funcionava como bar, restaurante e pequena pousada.
- Quando olhei para trás, vi o andar de cima rodopiar e afundar na lama. Não quero nunca mais voltar para Bento e ver como aquilo lá ficou, porque a saudade é grande demais - conta Sandra.
Graças à boa vontade da gerência do hotel, foi cedida uma cozinha para ela voltar a preparar coxinhas, pés-de-moleque e cocadas e, assim, recuperar uma fonte de renda. Mas a comerciante ainda nem faz planos de reabrir um bar em outro ponto da cidade. Como outras centenas de pessoas que tiveram a antiga rotina engolida pela lama, primeiro pensa em refazer documentos, encontrar um novo lugar para morar e, só então, voltar a viver de fato.
Sandra Dometirdes Quintão, que teve o bar destruído pela lama, conta com a boa vontade de um hotel para voltar a preparar coxinhas
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS
A vigília pelos desaparecidos
Todos os dias, Aline Ferreira Ribeiro, 33 anos, cumpre o mesmo ritual. Sai de casa e ruma para o centro de controle municipal, em Mariana (MG), onde se concentram as informações sobre as vítimas da Barragem do Fundão. Chega de manhã, por volta das 8h, e vai embora à noite sob a angústia de não saber onde foi parar o corpo do seu marido.
- Eu não tenho mais esperança. Só espero que encontrem o corpo para eu poder sepultar o Samuel. Não é justo uma pessoa trabalhar tanto tempo para ficar esquecida desse jeito - desabafa a viúva e mãe de quatro filhos.
Ela conta que um colega de serviço de Samuel Vieira Albino, que trabalhava na barragem, viu o momento em que a lama o engolfou. Quatro trabalhadores estavam no mesmo local e perceberam o tsunami de barro se aproximando. Correram para os lados e conseguiram sair do trajeto da lama. Albino, porém, tentou escapar em uma caminhonete. Uma primeira ondulação ergueu o veículo, e uma segunda, mais alta, o encobriu para não mais ser visto.
Aline Ferreira Ribeiro diz ter perdido as esperanças de encontrar o marido vivo
Foto: Bruno Alencastro / Agência RBS
Diariamente, enquanto aguarda notícias, Aline encontra-se com Ana Paula Alexandre, 40 anos. Ana Paula segue idêntica rotina de Aline pela mesma razão: descobrir o paradeiro do marido, o operador de escavadeira Odinaldo Oliveira de Assis, 40 anos, que também trabalhava na barragem. Passam praticamente o dia inteiro sentadas à espera da notícia que trará, ao mesmo tempo, dor e algum alívio.
- Depois de 11 dias, a esperança vai embora - desabafa Ana Paula.
Nos primeiros dias, a mulher imaginava que o marido pudesse estar refugiado em um ponto de difícil acesso na mata ou preso dentro da escavadeira. Agora, ela só quer descobrir para onde a enxurrada de lama levou Odinaldo para, então, tirá-lo debaixo do chão barroso.
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Rota da Lama
Zero Hora percorre o rastro de devastação provocado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco ao longo do curso do Rio Doce. A primeira parada foi na localidade de Bento Rodrigues, no município de Mariana, que registrou mortes, desaparecimentos e foi praticamente extinta. A segunda parada foi em Paracatu de Baixo, também em Mariana (MG), onde a lama destruiu as casas e se acumula em blocos de um a dois metros de altura. Em seguida, nossos repórteres visitaram Rio Doce e Governador Valadares. Em outra frente, no Espírito Santo, a reportagem já passou por Colatina e segue em direção ao litoral capixaba. Veja abaixo todas as matérias que já foram publicadas: