Millôr Fernandes gostava de repetir a velha máxima "Uma imagem vale mais do que mil palavras" com um adendo de sua própria autoria: "Tente dizer isso sem palavras". Nesta era da inconsequência, em que nenhum raciocínio vale mais do que 140 caracteres e nenhuma barbaridade merece ser ignorada sempre que servir à tese da redução da maioridade penal, imagens e palavras estão sempre em viés de baixa.
Papa ataca cultura do "descarte" e do "consumo" em missa
Papa tenta amenizar tensão política antes de missa que reúne 900 mil no Equador
Foi o que ocorreu nesta quinta-feira com a divulgação, pelo Vaticano, de fotografias de uma cerimônia na qual o presidente boliviano, Evo Morales, entregava presentes ao papa Francisco, de passagem por La Paz. Convictos de que o preço da liberdade é a eterna vigilância e que não se deve perder de vista um tipo perigoso como Evo, observadores bateram os olhos num crucifixo de madeira em forma de foice e martelo entregue pelo índio ao Santo Padre. As redes sociais foram imediatamente inundadas por advertências de que foice e martelo, quando dispostos em cruz, invocam o comunismo (não há consenso sobre o que significam isoladamente), que igrejas foram queimadas na extinta União Soviética e que a expressão do Papa era de quem recebe um laço de forca de presente de amigo secreto.
A realidade, como sempre, é inimiga da preguiça mental. O que Evo entregou a Francisco não foi um souvenir comunista em embalagem cristã, e sim um entalhe feito por um cristão que considerava ser seu dever eclesiástico estar ao lado dos "condenados da terra": o espanhol Luis Espinal, padre jesuíta como o Pontífice. Francisco tem Espinal em tão alta conta que fez questão de parar o Papamóvel no local onde o cadáver do sacerdote, assassinado por esquadrões da morte de extrema direita em janeiro de 1980, foi abandonado. Consta que a eliminação de Espinal foi decidida pelo general Luis García Meza, que comandaria um golpe meses depois, com apoio de militares argentinos e brasileiros e do fugitivo nazista Klaus Barbie, o Açougueiro de Lyon.
Atentos ao que vinha das mãos do boliviano, os guardas-noturnos da cristandade esqueceram-se de vigiar o peito do Papa. Francisco já trazia, pendurada ao pescoço, uma réplica do entalhe de Espinal.
Caso você tenha perdido os últimos capítulos, um fantasma ronda o Vaticano.
*Zero Hora