Daniel acordou da cirurgia e sentiu vontade de respirar fundo - algo que não se lembrava de ter feito sequer uma vez na vida. O segundo desejo veio na forma de uma ânsia por experimentar uma nova vida na cidade que, há dois anos e meio, havia acolhido a ele e a sua família:
- Finalmente vou poder conhecer Porto Alegre - disse, quando recebeu alta da Santa Casa, depois de um bem-sucedido transplante de pulmão, que completou três meses na quinta-feira.
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Seu percurso na Capital, durante todo esse tempo, resumia-se basicamente a caminhar 500 metros entre seu apartamento e o hospital - um trajeto curto, mas que não concluía sem um cansaço quase insuportável. O menino de 13 anos fala sem gaguejar o nome cheio de consoantes do motivo que o fez deixar sua terra natal (Aracaju, em Sergipe) para viver em Porto Alegre, mais de 3 mil quilômetros ao sul: bronquiolite obliterante com bronquiectasias, doença com a qual foi diagnosticado aos quatro anos de idade.
Os médicos indicaram a Santa Casa como referência em transplante de pulmão, um procedimento imprescindível para que Daniel, que nos últimos nove anos vivia permanentemente ligado a um tubo de oxigênio, seguisse vivendo. A mãe, Vanessa Rezende, juntou todas as economias que tinha, pediu ajuda de um e de outro e alugou um apartamento próximo ao hospital. Largou o emprego em Aracaju, colocou os dois filhos dentro de um avião (Daniel e Gabriel, de cinco anos) e partiu para um lugar onde pudesse ter esperança.
Na quinta-feira, a reportagem levou o menino para uma viagem por Porto Alegre. Daniel estranhou o frio no topo do ônibus da Linha Turismo, que passeia por quase duas horas pelos principais pontos da Capital, mas não tirou o sorriso do rosto. Brincou de apontar os prédios onde gostaria de viver seu futuro não-ofegante, o que inclui terminar a escola e fazer faculdade de Computação (teve de desistir de ser bombeiro pois, por motivos óbvios, não pode inalar fumaça).
- Queria um assim, com janelas de vidro na varanda. Moraria nessa rua - disse, sobre a Gonçalo de Carvalho, antes de ouvir a "moça do rádio" informar que aquela era considerada por alguns a rua mais bonita do mundo.
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Ele ainda não conseguiu se adaptar ao frio gaúcho: calcula, com saudade, que, nesta mesma época, Aracaju teria termômetros na beira dos 30ºC. Lá, outra saudade, morava em uma casa mais espaçosa, em uma região tranquila: não à toa estranha morar em um apartamento espremido no meio do Centro, única região com a qual é minimamente familiarizado. Aliás, quando o ônibus passa pela Santa Casa, ele apela à ironia:
- Isso aqui eu não conheço, é novo para mim - diverte-se.
Quando a "moça do rádio" diz que o hospital é referência em transplantes, emenda:
- Obrigado pela parte que me toca.
A orla do Guaíba chama a atenção do adolescente. Ele gosta da natureza e se admira com a vista daquilo que, mesmo com as informações do passeio turístico, "não entendeu se é lago ou rio". Ao contemplar a paisagem, lembra que isso só é possível graças a um telefonema que chegou em uma noite de sexta-feira.
- Achei que era mentira a notícia de que tinham um pulmão para mim. Eu adoeci muito pequeno, não sabia, até o transplante, o que era respirar de verdade. Hoje a minha respiração não tem limites, é uma sensação maravilhosa. Agora vou aproveitar tudo o que eu ainda não pude aproveitar.
O semblante leve da felicidade logo muda quando o ônibus passa pela escultura Supercuia, na rótula da avenida Beira-Rio. O que ele achou?
- Muito esquisito! Quem é que tem uma ideia dessas? Não parecem cuias... (e logo cai no riso, sem completar a frase).
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Por falar em cuia, Daniel não toma chimarrão e nem é muito fã das músicas gauchescas, mas deve ao Rio Grande do Sul o apreço por futebol, assunto que não lhe chamava atenção antes de vir para Porto Alegre. Ao passar pelo Beira-Rio, Daniel já anunciou:
- Quero entrar aí!
Foi uma promessa que fez a um senhor que também aguardava na fila do transplante, mas acabou morrendo antes de o doador aparecer. Acabado o tour no ônibus, Daniel escolheu dois lugares para visitar: o primeiro foi o estádio.
- É muito grande, senti uma coisa diferente ao chegar no gramado. Agora falta assistir a um jogo.
O outro eleito foi a Fundação Iberê Camargo, "uma arquitetura fantástica onde as artes são uma mais louca que a outra". Quando o guia das exposições perguntou se ele queria subir de elevador ou de rampa, não titubeou para escolher a segunda opção: agora, ele pode.
Ao fim do dia, ele finalmente pôde dizer algo sobre a cidade em que vive e que não tem previsão de abandonar:
- Não sabia que Porto Alegre era assim, tão linda. Pretendo conhecer mais dela e de outras cidades do Rio Grande do Sul.
Daniel ainda precisa visitar a Santa Casa com frequência, em função da fisioterapia pulmonar e de exames pós-operatórios. Antes, de passinho em passinho, levava quase 15 minutos. Quinta-feira, a reportagem comprovou: ele saiu de casa às 17h10min e chegou ao portão do hospital às 17h13min, deixando todo mundo para trás.
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