"Não sou racista, mas " foi o início de mais de um comentário sobre a chegada de imigrantes haitianos a Santa Catarina, há duas semanas. Quase sempre sem acabar bem. Quem expõe preconceitos na internet pode ser punido. No mundo real ou virtual, racismo e injúria continuam sendo crimes passíveis de punição na Justiça.
- A internet dá uma sensação de impunidade bastante grande porque a pessoa acredita que sozinha, na sua sala, diante do computador, não vai ser identificada ou localizada - explica o advogado Alexandre Botelho, secretário-geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC.
A pedido da reportagem, Botelho e um promotor do Ministério Público de Santa Catarina analisaram comentários selecionados em postagens do Diário Catarinense no Facebook. A identidade das pessoas foi preservada, mantendo apenas o conteúdo das frases postadas. Ele identificou o que podem ser considerados os crimes mais comuns praticados na internet ao expor opiniões preconceituosas.
Apareceram injúrias em várias postagens ofensivas aos haitianos ou a outras pessoas e a incitação ao crime e à violência. Esta última prática ocorre na maior parte das vezes em reportagens que tratam da cobertura de casos policiais. Aqui se enquadram os recorrentes "tem que matar mesmo", "bandido bom é bandido morto" e variantes.
Para os crimes resultantes de preconceito praticados na internet, o mais comum é a incitação ao racismo. Tem a ver com incentivar comportamentos por causa da cor da outra pessoa, como propor boicotes a fábricas que contratem os imigrantes negros. É na lei de combate ao preconceito que se enquadram comentários considerados racistas em processos judiciais.
- De maneira geral, o cidadão comum não sabe que tem o direito de pedir reparação por ofensas na internet. E ignora também que tem que responder pelos seus comentários - aponta o advogado José Vitor Lopes, presidente da comissão de Direito Digital da OAB-SC.
Quem se sentir ofendido pode procurar a polícia, o Ministério Público ou acionar um advogado. E o próprio MP tem autonomia para iniciar ações civis públicas contra comentários que sejam ofensivos.
Lopes explica que a Justiça ainda não compreende bem a dinâmica desses novos casos. No passado, uma ofensa envolvia duas ou três pessoas. Hoje, com
WhatsApp, Facebook e Twitter, uma injúria pode chegar a milhares de pessoas e envolver centenas de culpados por seu compartilhamento. Mas o advogado acredita que pode-se chegar ao ponto de punir até a pessoa que "curtir" um comentário racista, por exemplo.
- Isso pode gerar uma rensposabilização criminal, uma responsabilização civil com multa para reparação e até uma responsabilização administrativa ou trabalhista se a postagem for feita no horário de trabalho - explica o procurador do Ministério Público Federal Maurício Pessutto, elencando como possíveis penas prisão, indenização e até demissão.
Manifestação vira processo
Há quase dois anos, um estudante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) postou uma foto em um grupo no Facebook para alunos da instituição. A imagem retratava um homem negro entregando um cacho de bananas para um mulher, também negra, como se estivesse substituindo um buquê de flores.
A foto foi apagada um pouco depois, mas pessoas ofendidas salvaram a imagem e o processo chegou ao Ministério Público Federal (MPF).
- A liberdade de expressão tem que ser exercida de forma que não ofenda outros direitos - diz o procurador do MPF Maurício Pessutto, que protocolou no mês passado o processo na Justiça Federal de Santa Catarina pedindo uma multa de R$ 50 mil como reparação pelos danos causados.
A Justiça ainda vai analisar o caso para tomar uma decisão. Em sua defesa, na época, o aluno disse que foi mal interpretado. Agora, afirma que tudo teve motivação político-ideológica e culpa pessoas com ideologia de esquerda pelo processo.
Caberá ao Judiciário decidir, mas o MPF diz ter encontrado indícios de que ele já havia publicado outras mensagens racistas na rede social. O fato chegou a desencadear uma manifestação pública em frente à Reitoria da UFSC.
Opinião pública como juiz
Um caso que virou emblemático no mundo, em dezembro de 2013, teve efeitos práticos bem mais rápidos. Um pouco antes de embarcar em Londres rumo a Cidade do Cabo, na África do Sul, a americana Justine Sacco postou a seguinte frase em seu perfil no Twitter: "Indo para a África. Espero que não pegue aids. Brincadeira. Eu sou branca!"
Ela trabalhava como relações públicas da IAC, um grupo que controla empresas de internet como Vimeo e Tinder. Justine tinha 170 seguidores no Twitter.
Enquanto estava com o telefone desligado no vôo, durante 11 horas, virou o assunto mais citado da rede social. Devido à exposição, perdeu o emprego e recebeu o que talvez seja a maior humilhação pública já realizada na rede social, apesar de a questão não ter ido parar na Justiça.
Ao jornalista Jon Ronson, Justine disse ter sido mal interpretada. Estaria se referindo à bolha ideológica em que a maior parte dos americanos vive.
A entrevista foi dada para o livro So Youve Been Publicly Shamed, na tradução livre, algo como "E então você foi publicamente humilhado", que reúne histórias de pessoas que foram condenadas pela opinião pública na internet.