Em Pelotas, no sul do Estado, o Ministério Público instaurou 15 inquéritos e analisa mais de 70 cirurgias feitas mediante autorizações judiciais que estariam sob suspeita. Dez médicos são investigados pela suspeita de manipular orçamentos para cirurgias e forçar o Estado a pagar por procedimentos valores muito acima dos custeados pelo SUS.
Em 2009, quando as cirurgias judiciais começaram a ganhar força porque o município deixou de fazer alguns tipos de procedimentos traumatológicos, o médico Bruno Madrid Francisco, um dos investigados pelo MP, orçou em R$ 8 mil uma prótese de quadril.
Com 113 mil processos, RS é campeão nacional em ações judiciais na saúde
Dois anos depois, o mesmo médico orçou a mesma cirurgia por um preço quatro vezes maior: R$ 32 mil. O salto motivou abertura de investigação pela promotora de Justiça Rosely de Azevedo Lopes.
- Alguns médicos viram que era um ganho fácil e começaram a orçar grandes valores. Como a lei prevê que haja outros orçamentos no processo para garantir o menor valor, eles passavam para seus colegas, tudo previamente combinado - explica a promotora.
O MP também calcula que o município e o Estado tenham gasto, de 2009 até 2011, mais de R$ 1,3 milhão em decisões judiciais - o que, segundo Rosely, seria suficiente para quitar com as mais de 600 cirurgias eletivas ainda pendentes no município. Um exemplo de como o município começou a reverter essa situação é o de uma ex-diarista de 52 anos, que recorreu à Justiça após esperar oito anos por uma prótese no joelho. Ficava desequilibrada ao caminhar, mesmo com ajuda de muleta.
Na Justiça, a paciente obteve o direito de fazer o procedimento, que seria pago pela prefeitura, com o médico Renan de Oliveira Barbosa. A cirurgia custaria, incluindo internação e honorários, R$ 32.182. Inconformada, a prefeitura recorreu e conseguiu que o mesmo procedimento, feito pelo SUS, custasse R$ 1.154.
- Quando vemos que a cirurgia pleiteada é atendida pelo SUS, encaminhamos para o SUS. Não tem porque pagar algo que a prefeitura já tem acesso - informa o gerente da assessoria técnica da Secretaria Municipal de Saúde, Nelson Martins Soares Sobrinho.
A paciente diz que não sabia que o médico pleiteado por ela cobrava tanto.
- Se um médico diz que custa tanto, eu vou acreditar, né? Não sou médica - diz.
CONTRAPONTOS
Médico Bruno Anderson Madrid Francisco
Sobre ter cobrado R$ 8 mil e, dois anos depois, para a mesma cirurgia, R$ 32 mil, somente de honorários médicos, afirma que o preço varia conforme a necessidade de cada paciente, e que embora tenha a mesma moléstia, cada pessoa pode necessitar de tratamentos distintos, dependendo de suas condições físicas. Sobre o valor do orçamento de Regina, ele também afirma que inclui no valor o acompanhamento periódico.
Médico Renan de Oliveira Barbosa
Afirma que cobrou o valor particular, que considera correto para o caso desta complexidade. Também diz que o preço inclui o acompanhamento hospitalar, auxílio cirúrgico de um colega ortopedista, curativos e consultas no consultório particular até plena recuperação pós-cirúrgica, que pode levar até um ano.
Consultas sem paciente
Zero Hora procurou os nove traumatologistas de Pelotas que estão na mira do Ministério Público. Apenas dois deles, André Guerreiro e Nelson Luiz Saab, concordaram em fazer orçamento sobre cirurgia sem examinar diretamente a paciente. A promotoria investiga Guerreiro por dois procedimentos cirúrgicos e Saab por três. Veja o que eles disseram à repórter de ZH, sem saber que estavam sendo gravados.
Os preços
André Guerreiro recomendou que a suposta paciente buscasse o orçamento de outros médicos antes de apresentar, à Justiça, o valor que cobraria em um procedimento cirúrgico para uma artoplastia total do joelho (substituição por prótese).
- Primeiro tu tens que pegar os orçamentos dos outros (médicos), se vocês querem fazer comigo (o procedimento). É para eu olhar e a gente dar um orçamento compatível (valor inferior para ser apresentado à Justiça), entendeu?
O valor dobra
No consultório de Nelson Luiz Saab, uma funcionária do médico, Luciana Moreno Baladón, disse que ele cobra R$ 50 mil na Justiça por uma cirurgia que, se fosse privada, custaria R$ 25 mil.
- Se tu for fazer um pacote com a gente, vai sair em torno de R$ 25 mil. Pacote é um pacote social, ela não vai ficar em um quarto privativo, o material é mais simples um pouquinho, não é de má qualidade. Agora, se for fazer uma cirurgia particular, ela parte de R$ 50 mil. Porque o quarto, em vez de R$ 200 vai para R$ 800. Então o que a gente faz: quando a gente faz uma cirurgia via judicial, a gente cobra o valor particular.
Questionada se a paciente realmente vai ficar em quarto privativo, após a cirurgia via judicial, cujo valor cobrado é particular, a funcionária nega:
- Eu posso até dar o valor particular, mas não é... Geralmente a gente dá um valor de um quarto semiprivativo. Quarto de boa qualidade, com duas pessoas, com banheiro, TV, ar-condicionado. O importante é o procedimento ser bem atendido - admite a secretária de Saab.
Ela promete que a diferença em dinheiro será devolvida aos cofres públicos, caso não seja utilizada.
CONTRAPONTOS
O que diz o médico André Guerreiro
O cirurgião negou combinar com outros médicos valores de cirurgias judiciais realizadas mediante autorização na Justiça. Guerreiro disse:
"Na maioria das vezes o paciente vem pegar o orçamento já tendo escolhido seu cirurgião. Quando ele quer fazer (o procedimento) comigo pergunta se aceito aqueles valores, se é compatível com o que eu irei oferecer a ele."
O que diz Luciana Moreno Baladón, secretária do médico Nelson Luiz Saab
Ela diz que o valor é maior por via judicial porque todos os envolvidos fazem um preço menor quando é pago pelo paciente. Já quando o pagamento vem de dinheiro público, o valor sobe porque é incluído o preço de uma possível nova internação ou cirurgia. O dinheiro seria devolvido à prefeitura caso não fosse utilizado.
A Justiça em pílulas
MP investiga mais de 70 cirurgias feitas com autorização judicial em Pelotas
Médicos são suspeitos de de manipular orçamentos e forçar o Estado a pagar valores muito acima dos custeados pelo SUS
GZH faz parte do The Trust Project