A rua não é uma via de mão única para as crianças e os adolescentes. Assim como meninos e meninas deixam a casa dos pais em busca dos falsos atrativos da vida, do consumo de drogas e do dinheiro fácil garantido pela esmola, muitos outros percorrem o caminho inverso rumo à estabilidade.
Jovens que, na idade de Felipe - personagem de 14 anos retratado em caderno especial publicado por ZH domingo passado - se encontravam em uma situação semelhante de drogadição e desamparo, hoje dão indícios de que é possível se reerguer.
Três adolescentes reunidos nesta reportagem experimentaram drogas e sofreram com a ausência paterna. Mas, com auxílio de serviços públicos e privados, e munidos de determinação pessoal, mudaram de rumo.
- Resgatar essas crianças é possível. É responsabilidade do Estado e da sociedade civil. As casas de acolhimento já melhoraram muito nos últimos tempos, embora a formação dos profissionais ainda deva ser aprimorada - observa a Coordenadora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA), Sílvia Koller.
Veja o vídeo sobre a trajetória errante do menino de rua Felipe
L. trocou o crime pelo trabalho duro
Com apenas 12 anos, L. estava casado com uma adolescente quatro anos mais velha, morava em sua própria casa e aguardava ansioso o nascimento do primeiro filho. A vida de adulto que experimentou ainda durante a infância era apenas o prenúncio de uma série de infortúnios que o levaram à vida na rua, ao consumo de drogas e ao crime. Agora, aos 18, está prestes a recomeçar da estaca zero.
Precoce, L. (não pode ser identificado por estar cumprindo medida socioeducativa) se apaixonou ainda criança e passou a viver junto com a adolescente, que engravidou. Sua trajetória se complicou quando a companheira, orientada pela mãe, fez um aborto. No hospital, descobriu que na verdade seria pai de gêmeos. Abalado, após quatro anos de vida conjugal, saiu de casa e começou a beber. Em seguida passou para a maconha, daí para o pitico (maconha com crack) e, finalmente, afundou no crack.
Morou em diferentes lugares até chegar à rua. Transformou em casa um matagal nas proximidades da Avenida Ipiranga, onde dormia sobre dois papelões.
- Na rua, papelão é ouro. Para não me roubarem, carregava comigo para onde quer que eu fosse - conta.
O vício do crack lhe levava a cometer furtos, até que no ano passado foi convidado a praticar um assalto a uma lotação com outros dois jovens. Enquanto saíam do veículo, toparam com uma viatura da Brigadar. Um companheiro foi morto, e ele, que estava desarmado, acabou detido e encaminhado à Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado (Fase).
Desde então, surpreende os servidores pela determinação em recolocar a vida nos eixos. Livrou-se das drogas, dedicou-se a fazer cursos e oficinas. Há cerca de um mês, começou a trabalhar na varrição das ruas da Capital. Sai todos os dias às 6h30min e retorna no final da tarde. Graças a seu esforço, já recebeu uma promoção: em vez de apenas varrer, passou a comandar um dos carrinhos que recebem os detritos acumulados pelos demais varredores junto ao meio-fio.
No próximo mês, L. terá audiência em que poderá ter a pena extinta ou progredir para o regime de semiliberdade. Sonha em ter um filho e em comprar um cavalo.
- O nome do cavalo vai ser Lampião - afirma.
Juliano se tornou chefe da família
A infância de Juliano Souza se assemelha a um enredo cujo desfecho só poderia ser a tragédia. Teve o pai assassinado, perdeu a mãe para as drogas, se envolveu com o tráfico, viveu na casa de parentes e na rua, passou fome. Mas sua juventude mais parece o roteiro de um filme que termina em redenção.
Com 19 anos, o rapaz se tornou chefe de família. Conseguiu adquirir um apartamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida, pelo qual paga R$ 240 por mês e onde abriga e sustenta outros dois irmãos. Para isso, se desdobra entre dois empregos e aplica as mesmas regras de respeito e disciplina que aprendeu durante o tempo em que permaneceu sob os cuidados de um abrigo em Porto Alegre.
Juliano vivia bem até os nove anos, quando seu pai foi morto a tiro em uma desavença familiar. A partir daí, a família se desestruturou. A mãe vendeu a casa, começou a usar drogas, depois a vendê-las. Pouco depois, fumava crack na frente das crianças e sumia por três, quatro dias.
- Eu ficava muito nervoso, com meus irmãos, sem saber quando ela ia voltar - relembra Juliano.
Para aumentar a renda, a mãe mandava Juliano, ainda criança, entregar as drogas que ela negociava. O menino chegou a usar maconha. Durante quase dois anos, viveu sem rumo. Sua história começaria a mudar quando foi encaminhado para o abrigo João Paulo II com outros dois irmãos. Lá, encontrou carinho, cuidado e regras. Fez cursos de informática, design gráfico, de auxiliar administrativo, concluiu o Ensino Fundamental e iniciou o Médio.
- Hoje (quinta-feira passada) sonhei que estava na casa-lar. Sonhei que eu estava jogando videogame e me chamavam para o almoço. Era feliz e aprendi muita coisa lá - recorda.
Cerca de um ano depois de deixar o abrigo, Juliano procura aplicar as normas que aprendeu na casa provisória em seu próprio lar.
- Meus irmãos ficam até mais tarde fora de casa, aqui no condomínio. Eu não gosto disso. Quero que a minha casa seja como era lá, com horários e regras - afirma.
O rapaz sustenta um irmão e uma irmã (outro irmão mais velho vive na rua, um quarto segue no abrigo, e a mãe continua usando drogas) trabalhando na construção civil e em uma pizzaria. Pretende concluir o Ensino Médio e conseguir emprego como cobrador de ônibus. Seu grande sonho, porém, é redimir sua própria origem por meio de uma nova geração:
- Quero muito ter um filho. Mas vou criar do meu jeito, do jeito certo.
D. largou o crack para não perder a filha
Até o ano passado, D., 17 anos, era considerada um caso perdido para o crack. Viciada desde os 12 anos na pedra, com histórico de tráfico de drogas, prostituição e comportamento agressivo, não despertava esperança de recuperação entre os familiares ou profissionais de saúde. Desde então, se mantém internada voluntariamente em um abrigo na Capital, longe das drogas e sem novos surtos de violência. A surpreendente revolução pessoal pode ser explicada por sessões de terapia, oficinas, cuidado constante e pelo nascimento de sua filha, hoje com um ano.
D. começou a consumir drogas para imitar amigas do colégio. Em pouco tempo, passou a fazer parte de um bonde (grupo de jovens que costumam praticar delitos). Na primeira desavença com uma gangue adversária, não conseguiu bater em ninguém. Por isso, apanhou das próprias colegas. Foi o batismo de fogo.
Quando já vendia drogas, certa vez consumiu toda a cocaína que deveria negociar. Foi punida com uma surra de espetos nos braços e nas pernas pelos patrões do tráfico. O pior momento, porém, foi quando teve de acompanhar um grupo de traficantes ao encontro de uma viciada em dívida.
- Se tu queres entrar para essa vida de crime, tem de aprender a matar - ouviu de um deles.
Em seguida, foi levada a testemunhar a morte da jovem, estrangulada com um fio de náilon.
- Me fizeram participar daquilo. Também tive de segurar o fio. Isso me deu um sentimento de culpa e uma revolta que só consegui entender com as sessões de terapia - conta.
Já no hospital onde viria a dar à luz, no ano passado, precisava ser contida para não surrar outras pacientes da unidade em frequentes surtos. Quando recebeu nos braços a filha e entendeu que, se não mudasse, perderia a criança, decidiu romper com a antiga vida. O período de mais de um ano na Casa de Marta e Maria, abrigo de freiras para onde foi encaminhada por meio do serviço Ação Rua, aplacou a ira.
Ela está em fase final de adaptação para voltar para a casa da avó, em Viamão. Tem um emprego encaminhado em um supermercado, e não passa um minuto longe da filha, fruto de um relacionamento com um traficante que ela pretende não ver mais.
- Foi Deus que botou minha filha no meu caminho.