Sem sangue, nem suor, nem lágrimas, foi afinal rejeitado o projeto do vereador Pedro Ruas que visava a alterar o nome da Avenida Castelo Branco para Avenida da Legalidade. A matéria não era realmente importante, e, se aprovada, a proposta, por si só, não demonstraria invencível amor dos porto-alegrenses à democracia. Nesse assunto, a cidade se pauta por grande tolerância moral e política.
Em certa ocasião, o Dr. Breno Caldas, então diretor do Correio do Povo, alertou-me de que havia até estelionatários nas placas de logradouros públicos. E como vários ditadores ou amigos de ditaduras estão entre os homenageados, seria um afanoso trabalho dos vereadores fazer censura e faxina política na nomenclatura urbana. Prova da absoluta tolerância de Porto Alegre é que temos uma Praça Che Guevara, e uma rua do bairro Cascata com o nome de Carlos Marighela. Nem um nem o outro passariam num exame de fidelidade à democracia e à legalidade.
A denominação das ruas reflete apenas momentos de prestígio dos homenageados, devoção ocasional de bajuladores, clima de emoção a propósito de acontecimentos sensacionais. As reverências oscilam conforme o termômetro político. Em 1935, no auge do prestígio, Flores da Cunha foi presenteado com as placas da Avenida Independência. Derrubado em 1937, retiraram-lhe o preito. Silveira Martins, o todo-poderoso do Rio Grande ao tempo do Império, ganhou sua rua ainda em vida _ uma então promissora travessa da Independência.
Sobrevindo a Revolução Federalista, cassaram-lhe a distinção, e o logradouro passou a reverenciar o General João Telles. Igual sorte teve então o General Silva Tavares, substituído sumariamente pelo Marechal Floriano Peixoto. Quando as emoções dominam, acontecem estranhas homenagens: no bairro São João, há três logradouros com o nome de desconhecidos, apenas porque foram vítimas de um naufrágio trágico na barra de Rio Grande em 1887... As vêneras municipais aos presidentes da República, sejam eles quais forem, sempre aparecem.
É a sina do centralismo presidencialista. Prudente de Moraes, que em certo momento foi tido como inimigo do Rio Grande do Sul, tem hoje a sua ruazinha na Chácara das Pedras. E Washington Luís, o malsinado Washington Luís, contra quem se fez uma revolução em 1930, terminou regiamente reverenciado na Cidade Baixa. Não tardará que até o Fernando Collor tenha a sua. Pois ele já não é senador da República? Quanto a ditadores, temos fartura nos logradouro públicos, com a plena aquiescência dos vereadores: Deodoro, Floriano, Getúlio Vargas...
Outro motivo também não me alinhou entre os apoiadores do projeto do meu amigo Ruas. É que "legalidade" é substantivo comum, mero sinônimo de juridicidade ou legalismo. Não é designação específica de coisa ou de evento. Nem de uma virtude intangível. Houve uma "legalidade democrática", como houve tantas ditatoriais ou despóticas. O termo foi identificado com o movimento em favor da posse do vice-presidente Goulart, mas daqui a 50 anos ninguém saberá do que se trata. Temos na Floresta uma "Rua Emancipação". E alguém sabe a que episódio se refere? Pois foi à abolição da escravatura em 1888. Na época, todos sabiam do evento em referência. Mas hoje se tornou um dos mistérios da cidade.
*Historiador