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Uma pesquisa que está sendo conduzida pelo Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) transformou em estatística uma percepção desses tempos de coronavírus: estamos dormindo mal. Não necessariamente menos, talvez até mais, mas mal.
Cerca de 2,2 mil pessoas, de várias regiões do Estado, participaram do estudo “Como está o seu sono e o sono de seus filhos durante o confinamento domiciliar pela covid-19?”. Há uma parte objetiva, com questionários validados por pesquisas nacionais e internacionais – quanto tempo levou para adormecer, se acordou no meio da noite, número de horas dormidas, qual a probabilidade de cochilar lendo ou assistindo TV, por exemplo. E há uma pergunta subjetiva, para saber a impressão do respondente sobre seu sono – se melhorou, piorou, não mudou ou não sabe.
Alguns dos resultados, que vão gerar um artigo para uma revista científica, foram antecipados a GaúchaZH por Magda Lahorgue Nunes, vice-diretora do Instituto do Cérebro. Na população adulta, 69% consideram que houve piora na qualidade do sono, e apenas 10% acham que melhorou – em geral, porque não precisam levantar cedo. Entre os pais de crianças de zero a três anos, 45% perceberam mais dificuldades para elas dormirem – o percentual foi de 50% em relação a filhos de quatro a 12 anos. Os números relativos a essas faixas etárias ganham vulto se comparados a um levantamento feito dois anos atrás, também pela PUCRS: 24% da população infantil apresentava distúrbio do sono.
— A pesquisa está fechando com a impressão que as pessoas têm: houve uma piora do sono durante a pandemia — comenta Magda.
Os motivos são evidentes, diz a professora da Escola de Medicina da PUCRS e especialista em Neurologia e Pediatria:
—As crianças perderam a rotina da escola, e o uso de telas aumentou muito. Aliás, nossa vida ficou quase toda online, o que também acaba prejudicando o sono dos adultos. Estes sofrem ainda o peso emocional: medo, preocupação, ansiedade. Como vai ficar meu trabalho? Como pagar as contas no fim do mês?
É aí que a cama começa a interferir na mesa. E vice-versa.
Estudos científicos já mostraram que uma noite mal dormida impacta no humor da pessoa no dia seguinte. Se ela já está em um estado de ansiedade ou depressão, pode acabar recorrendo à alimentação como uma espécie de regulador.
— Em um caso como o do coronavírus, de alerta global e incerteza completa, isso se agrava — afirma a nutricionista Lidiane Pellenz, mestre em Ciências da Saúde e especialista em Psicologia do Comportamento Alimentar.
A comida como um refúgio emocional
Uma barra de chocolate, um pedaço de pizza, um hambúrguer ou uma taça de sorvete são encarados como aliados para suplantar momentos de estresse, frustração, tédio, cansaço e solidão. Em entrevista a GaúchaZH em março de 2019, o psiquiatra Cláudio Martins sintetizou:
— Quando nascemos, a angústia inicial é a fome. Essa sensação passa com a amamentação, que também acolhe e tranquiliza. Mas essa memória fica armazenada e é resgatada em outras etapas da vida. Mesmo sendo demanda emocional, e não alimentar, o sujeito busca a comida como remédio.
A comida vira um refúgio porque está associada a prazer, alegria, experiências positivas. Mas há também uma reação química por trás da busca por junk food. O medo do contágio pelo coronavírus, um caso de covid-19 na família ou a pressão no trabalho são interpretados, no cérebro, como ameaça. Sobem, então, os níveis de cortisol, um hormônio útil em situações de fuga ou de luta por aumentar os batimentos cardíacos, fazendo o oxigênio chegar mais rápido aos músculos. Uma consequência negativa é tornar o corpo resistente à insulina, hormônio que age como “porteiro” ao regular a entrada de glicose (alimento) para dentro das células.
O isolamento favoreceu a busca aos alimentos por fatores sentimentais, mas quanto mais buscamos conforto na comida, mais sensação de angústia e culpa podem surgir como consequência de tais ações.
LIDIANE PELLENZ
Nutricionista comportamental
Uma vez que as células estão resistentes à insulina, o corpo fabrica mais desse hormônio para compensar. Com muita insulina circulante no sangue, a reação do cérebro para que a glicose não baixe demais é pedir comida. E os alimentos que fornecem mais glicose são carboidratos complexos, presentes em farinha, arroz e batata.
Há, ainda, estudos relatando que a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de recompensa, costuma ser liberada quando consumimos altos teores de açúcar, sal e gordura. E os níveis de serotonina, o “neurotransmissor da felicidade”, sobem após a ingestão de chocolate, queijo e carboidratos.
Por tudo isso, muita gente pode estar vivendo um círculo vicioso. Dormir mal prejudica o humor. Para tentar equilibrar a situação, um dos recursos é comer. Só que não é um “comer saudável”, ressalta Lidiane, o que provoca mais desequilíbrio e afeta o sistema imunológico.
— A falta de rotina gerada pela quarentena pode piorar os quadros de exagero alimentar. Sem priorizar os horários das refeições, ficamos mais vulneráveis. O isolamento favoreceu a busca aos alimentos por fatores sentimentais, mas quanto mais buscamos conforto na comida, mais sensação de angústia e culpa podem surgir como consequência de tais ações — analisa a nutricionista.
O ataque do cérebro ao “segundo cérebro”
Ao seguir os impulsos, nosso cérebro ataca o chamado segundo cérebro: o intestino. Lidiane explica:
— O intestino secreta hormônios que são importantes para o sono, como a serotonina, ligada ao bem-estar. Se o órgão estiver funcionando bem, vai absorver triptofano, que é um dos nutrientes precursores da melatonina, produzida no cérebro e reguladora do sono. Mas se eu como em exagero, se aposto em alimentos mais gordurosos, cheios de açúcar, isso se torna difícil.
A privação crônica do sono reduz a secreção de leptina (o hormônio da saciedade) pelo intestino e aumenta os níveis de grelina (o hormônio da fome), tornando-se, assim, um fator de risco para sobrepeso e obesidade.
MAGDA LAHORGUE NUNES
Vice-diretora do Instituto do Cérebro da PUCRS
E, para muitas pessoas, a tendência é justamente consumir esse tipo de produto à noite, como forma de encerrar mais um dia vencido ou de afogar mágoas. Há quem tome café para desestressar sem se dar conta de que a cafeína é um estressor do sono.
— A maioria acha que só café tem cafeína, mas ela está presente nos achocolatados, nos refrigerantes, inclusive no chá verde, mesmo sendo mais natural — aponta Magda Nunes, do Instituto do Cérebro.
Por sua vez, alimentos pesados e gordurosos exigem uma digestão mais demorada, o que atrapalha na hora de dormir. Magda finaliza:
— A privação crônica do sono reduz a secreção de leptina (o hormônio da saciedade) pelo intestino e aumenta os níveis de grelina (o hormônio da fome), tornando-se, assim, um fator de risco para sobrepeso e obesidade.