Saudade da escola, dos amigos, de ver os familiares, de andar de bicicleta. Alegria por estar com os pais em casa. Sentimentos distintos que, muitas vezes, acometem ao mesmo tempo os pequenos moradores de Porto Alegre ainda em distanciamento social devido à pandemia de covid-19.
Inspirada na campanha mundial Sentimentos no Papel, promovida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), GaúchaZH convidou sete crianças da Capital a desenharem seus sentimentos e suas impressões deste período.
Para a psicóloga Giuliana Chiapin, mestre em saúde mental e desenvolvimento infantil pela Tavistock Clinic/Londres, é importante falar com as crianças sobre o coronavírus. Blindá-las, esclarece, pode causar mais confusão sobre a atual situação.
— Falar sobre a pandemia, brincar, tentar materializar e representar a situação de alguma forma pode ajudar muito. A ideia dos desenhos, de como está se sentindo, é incrível porque, independentemente do estímulo, são oportunidades para falar. E para falarmos, precisamos organizar as ideias e os sentimentos dentro de nós. Quando falamos, compartilhamos com outra pessoa e damos significado. O coronavírus é algo microscópico, mas que tem um impacto gigantesco, o que muitas crianças não conseguem compreender — pontua a especialista.
Experiência de uma vida nova
As aulas pelo computador, sem o recreio com os colegas, têm sido encaradas como uma nova experiência por Joana Foiatto Roehe, oito anos, moradora do bairro Petrópolis. Para suprimir a saudade das amigas, a estudante do terceiro ano do Colégio Santa Inês faz videochamadas fora dos horários dos exercícios escolares.
— O que menos gosto é não poder encontrar as pessoas fisicamente e brincar com minhas amigas. Ao mesmo tempo, gosto porque estou experimentando uma vida nova — justifica a menina.
Os pais de Joana, os engenheiros Noara Foiatto e João Miguel Lac Roehe, fazem questão de esclarecer as dúvidas da filha sobre a pandemia e de conversar sobre os sentimentos.
Para a reportagem, Joana fez dois desenhos. Em um deles, mostra como está a vida hoje: no computador. As aulas são chamadas de live e os encontros com as coleguinhas só ocorrem virtualmente.
No outro, o seu maior desejo: voltar a caminhar na rua para ir à escola.
“Esta vida nova está diferente. Estou com muita saudade dos meus amigos, de sair de casa e de ir à escola.”
Joana, oito anos
Saudade da escola
A pandemia mudou completamente a rotina das irmãs Rafaela, sete anos, e Maurine, nove anos, alunas do segundo e quarto anos, respectivamente, da EMEF Senador Alberto Pasqualini, no bairro Restinga. Rafaela estava em adaptação na instituição quando iniciou o distanciamento social.
Desde então, as duas passam os dias dentro do apartamento com a mãe Nurymar Ribeiro, demitida do emprego num restaurante por conta da pandemia, o irmão Miguel, de um ano, e o padrasto, Igor da Luz.
— Está sendo triste porque não tenho a professora para falar comigo e os colegas. Recebo as aulas pelo Facebook e faço sozinha. Não falo com as minhas amigas. Queria que voltasse ao normal para ir à escola — desabafa Maurine.
Nos desenhos, as duas irmãs reforçaram o desejo de retornar à Pasqualini. Maurine lembrou dos livros de matemática e da bicicleta, aposentada temporariamente.
Rafaela fez questão de desenhar um caderno com a personagem Minnie, um livro, um estojo, um lápis e uma borracha.
“Eu sinto saudade de ir à escola.”
Rafaela, sete anos
“Sinto falta de estudar e de andar de bicicleta na rua.”
Maurine, nove anos
Voltar a ver os avós pessoalmente
O maior desejo, atualmente, de Caio Mittmann Rodrigues, 10 anos, aluno da Escola Projeto, é compartilhado pela irmã Manuela, sete anos, aluna do Colégio Marista Assunção: voltar a visitar os avós Derli Flávio Mittmann e Ledi Bielefeldt Mittmann.
Moradores do bairro Medianeira, os dois moram com a mãe, a professora Jéssica Mittmann, e o padrasto, Felipe Conceição. No lugar do basquete, antes praticado nas terças e quintas-feiras, Caio passa parte do tempo deitado em uma rede lendo livros de ficção.
— As tarefas da escola estão na mesma quantidade. Fora isso, está diferente porque não posso ver as pessoas. Tirando que eu estou com muita saudade do vô e da vó, estou bem — diz o garoto.
Manuela ressalta o lado positivo, também citado pelo irmão:
— Posso ficar mais tempo com a mãe em casa.
Nos desenhos, Caio fez um celular quebrado com a imagem dos avós, representando a saudade, um controle de videogame, que lembra os jogos ao lado do pai, André da Silva, o rosto da mãe, com quem aproveita para passar mais tempo durante a pandemia, e um cachorro da família. Manuela fez em preto e branco as casas dos avós e da ex-babá, Mauriane Legal Cauduro, representando a tristeza por não poder vê-los. Na parte colorida, a felicidade, ela se autorretratou e desenhou também a mãe, o irmão e o padrasto.
“Estou gostando de ficar mais tempo com a família.”
Manuela, sete anos
“Não posso sair de casa, não posso ver as pessoas pessoalmente. No computador, eu fico sem assunto.”
Caio, 10 anos
Mais tempo livre
Os dias em casa estão sendo celebrados pelos irmãos Milena Jacques-Mancio, seis anos, e Thales Jacques-Mancio, nove, alunos do primeiro e do quarto anos da escola Amigos do Verde. Milena é quem mais comemora o tempo livre para brincar com o irmão, mesmo reclamando de não poder ir à rua:
— Eu estava acostumada a sair e sujar os pés. Agora, não posso me sujar. Mas é legal porque também tenho uma folga. Antes, tinha aulas o dia inteiro e só me sobrava a tardinha.
Ativos, os irmãos, além das aulas regulares do Ensino Fundamental, continuam praticando outras atividades durante a semana – todas virtualmente. Ambos cursam informática (programação), aulas de inglês e ainda aprendem a tocar instrumentos musicais. Thales é pianista, e Milena toca cello. Sem o deslocamento para as aulas, o tempo está sobrando para os dois moradores do bairro Petrópolis, que vivenciam o distanciamento social ao lado dos pais, a arquiteta e professora na UFRGS Jocelise Jacques e o engenheiro civil e professor na Unisinos Mauricio Mancio.
— O mais chato é não sair todos os dias, mas o mais legal é que tenho muito tempo para ver televisão — afirma Thales, que também faz experimentos com hortas caseiras.
Nos desenhos, Thales coloriu uma mandala, porque ela exige trabalho, calma, concentração e tempo, e um grande ponto de interrogação, representando os próprios questionamentos.
Milena lembrou, num coração, a avó, que está em outra cidade, e o pai, responsável por ir ao supermercado para a família. Também fez questão de colocar a escola de antes da pandemia e as aulas virtuais, e, ainda, ela e o irmão brincando juntos.
“O legal é que tenho mais tempo livre para brincar com o meu mano.”
Milena, seis anos
“Durante esta quarentena, às vezes, fico meio confuso e com perguntas do tipo ‘quando tudo irá voltar ao normal?’”
Thales, nove anos
Duas perguntas para Giuliana Chiapin, psicóloga, mestre em saúde mental e desenvolvimento infantil pela Tavistock Clinic/Londres
Falar ou não com as crianças sobre a pandemia? Como abordar? Depende da idade?
É preciso justificar por que elas não estão mais indo à escola, ao parque ou, pelo menos, seguindo a vida como faziam até o início deste ano. Conversar servirá para que elas não pensem que a situação é muito pior ou que estão sendo castigadas por algo que fizeram. Quando as crianças têm a informação adequada, reduzem o risco de fantasiarem e criarem as suas próprias histórias. Quando os responsáveis, os adultos, trazem para a criança uma informação com segurança, afeto e coerência, ela não precisa mais pensar sobre aquilo. Ela sabe que a partir dali tem uma fonte e um lugar onde pode buscar as respostas.
Como lidar com crianças que ainda insistem em voltar ao que era considerado normal antes da pandemia?
A criança tem o direito de querer voltar à vida normal, mas é papel do adulto confortá-la e dar limites. Esta é uma grande oportunidade para as crianças e adolescentes fazerem o exercício de compreender que nem tudo que a gente quer é possível, está ao nosso alcance ou podemos controlar. Esta situação serve para nos ensinar que, muitas vezes, temos que desviar a rota, reaprender, ressignificar e tolerar frustração.