Adelar Marques vai acordar cedo neste sábado (19) e rumar para as imediações do Beira-Rio. Torcedor colorado, ele é proprietário de um bar em frente ao estádio e sabe que em dias de Gre-Nal a clientela é maior e é preciso se preparar. Do outro lado da cidade, nos arredores da Arena, a gremista Maria Helena Gonçalves estará se aprontando para visitar a casa do rival. E para testemunhar um clássico especial, que marca o retorno da rivalidade ao Rio Grande do Sul.
Adelar tem 53 anos. Maria Helena, 69. Um morava no Menino Deus, a outra mora no Humaitá. Dois bairros afetados pela enchente de maio. Os dois torcedores não se conhecem, mas têm muito em comum. Como milhares de gaúchos, viram suas casas e negócios tomados pela água. Viram os estádios de seus clubes irreconhecíveis. Perderam móveis, documentos e dinheiro. Mas não perderam a esperança, nem abandonaram suas maiores paixões.
— Fui escolhida, assim como um monte de gente, para testar a minha fé — diz Maria Helena.
Figura frequente nas cadeiras na Arena, a professora aposentada precisou deixar seu apartamento às pressas quando a água subiu sem aviso. Pegou alguns objetos pessoais e foi buscar refúgio na casa de familiares. No caminho, viu mães com crianças de colo com água pela cintura, pessoas usando colchões como barcos em busca de refúgio e sentiu uma tristeza profunda.
A professora conta que teve um sentimento semelhante em outras duas ocasiões naqueles dias. Quando encontrou o quarto decorado com as cores e itens do Grêmio revirado pela lama, após a água baixar. E quando passou em frente à Arena e viu o tamanho dos estragos em sua segunda casa.
— A minha tristeza triplicou. Triplicou porque, para mim, o Grêmio é a minha casa. É a minha segunda casa. Eu tenho uma história de amor com o Grêmio muito grande e a gente se entrelaçou mesmo no barro, na lama e na água — define ela.
A relação de Adelar com o Beira-Rio é tão intensa quanto e, com certeza, mais antiga que a dela com a Arena. Ele nasceu em 6 de abril de 1971, exatamente dois anos após a fundação do estádio. Lembra de ter ido ver o Inter jogar pela primeira vez aos quatro anos, levado por um padrinho. E conta que, desse dia em diante, o amor pelo Colorado só cresceu.
Foi dentro do Beira-Rio que o comerciante abriu o primeiro bar em 2017, ano em que o Inter enfrentou as agruras da Segunda Divisão. Três anos depois, o empreendimento cresceu e mudou-se para a frente do estádio, na Avenida Padre Cacique. Quando o Guaíba começou a tomar as ruas do bairro, ele temeu pelo pior e usou o CT do Inter como uma espécie de régua para medir o avanço das águas.
— Lá no Parque Gigante tem uma placa, com a frase "O Clube do Povo". Toda hora eu ia lá para ver se a água estava subindo. E essa placa ficou toda submersa. Quando chegou no "Clube", eu já percebi: "Vai dar problema".
O comerciante perdeu tudo que tinha no bar. Balcões, cadeiras, geladeiras. Tudo foi levado pela água. Conseguiu salvar alguns alimentos perecíveis, que doou para um asilo próximo ao estádio. Entre o que foi destruído e o que deixou de ganhar com o bar fechado durante cerca de um mês e meio, calcula um prejuízo próximo dos R$ 300 mil. Mas ele não se abateu. E quando o estádio reabriu no jogo contra o Vasco, no começo de julho, agradeceu aos céus.
— "Obrigado, meu Deus. Obrigado". Foi um momento de redenção. Não só para mim, mas também para um ambulante que fica na rua ali. Foi para todo mundo. Eu nunca pensei só na minha barriga, no bar. Nós aqui fortalecemos todos os bares — relata.
Maria Helena também já recuperou a parte preferida da casa e várias das camisas do Grêmio que coleciona com carinho. Mas assim como Adelar, ainda está reconstruindo a vida aos poucos, com muita fé. A expectativa de ambos é de que o Gre-Nal possa trazer um pouco de alegria e ajudar na retomada do cotidiano de muitas pessoas. E que a enchente tenha deixado algumas lições.
— Eu senti isso quando vi os jogadores dos dois times com as pessoas na garupa, jogadores com jet-ski, jogadores estendendo a mão para todo mundo, independente do time. Nós temos que aprender a viver e conviver respeitando as diferenças. Não é muito fácil, mas temos que fazer isso — reflete a torcedora.
— É um Gre-Nal simbólico para ambos os lados. Depois de tudo que a gente passou, a gente tem que se unir, sabe? É um recomeço para todo mundo. Gre-Nal é tudo. Gre-Nal é vida — comemora Adelar.
No Globo Esporte desta quinta-feira (17), às 13h15min na RBS TV, confira mais detalhes sobre as histórias de Maria Helena e Adelar. E suas expectativas para o primeiro clássico em Porto Alegre após a enchente. Dirigentes serão retratados nesta sexta-feira (18). Já os funcionários dos clubes foram ouvidos na primeira parte desta série.