Perda de audição e rosto queimado por conta de supostas agressões que teria sofrido de policiais da Brigada Militar. Esse é um resumo do depoimento de um torcedor do Brasil-Pel dentro do processo de investigação do Caso Rai Duarte — torcedor do time pelotense que está internado em Porto Alegre há 30 dias devido a uma lesão no intestino.
GZH teve acesso com exclusividade a um dos testemunhos da oitiva audiovisual realizada em 18 de maio, quando a Corregedoria da Brigada Militar e o Ministério Público se deslocaram a Pelotas para ouvir os demais envolvidos na confusão após o jogo São José 0 x 0 Brasil-Pel, em 1º de maio, pela Série C do Brasileirão, e apurar novas informações para a conclusão do inquérito.
Além do suposto abuso de violência física, o torcedor do clube pelotense também reclamou do atendimento do Hospital Cristo Redentor devido a ameaças dos PMs. O nome do depoente será mantido em sigilo. "A gente foi muito ameaçado", afirmou na oitiva.
Doze torcedores do Brasil-Pel foram detidos pela Brigada Militar após uma briga entre a torcida Xavante e a do São José no Estádio Passo D'Areia. Entre eles estava Rai Duarte que, desde então, está internado em estado grave na UTI do Hospital Cristo Redentor, sob sedação e ventilação mecânica. Testemunhas afirmam que ele foi agredido por PMs em um espaço dentro do estádio, assim como os demais presos.
"Quando acabou a briga, a polícia nos pegou no canto, perto da bandeirinha de escanteio, e começou a nos bater. Gás de pimenta, cassetete e tapa na cara. Depois nos algemaram e nos colocaram no chão. E ali era chute e tapa na cara direto, nos chamando de lixo. Quando trouxeram o Rai, ele também apanhou muito. Meu rosto está queimado do gás de pimenta e perdi a audição do ouvido esquerdo. Agora está voltando, bem baixinho. Usaram o spray de pimenta duas vezes em mim. Tentei respirar e entrou pela minha boca", relatou um torcedor no inquérito, lembrando que um dos PMs se identificava como "Duarte": "Quando pediram meus documentos, eu não sabia de cabeça meu RG, só o CPF. E por isso eu apanhava mais. Não vi quem era, pois estava de cara do chão, mas quem batia no Rai dizia que poderiam falar o nome dele, que não tinha medo. Dizia que era 'Duarte'. Depois o Rai foi para outro lugar. A gente só ouvia um barulho das pancadas."
Enquanto 11 torcedores foram detidos ainda na arquibancada do estádio, Rai Duarte foi retirado por dois policiais da Brigada Militar de um ônibus de excursão que estava próximo ao Passo D'Areia e voltaria para a Zona Sul do Estado. A cena foi registrada por um dos passageiros. Por ter sido policial temporário no passado, Rai era chamado pelos policiais de "ex-colega". "Além das agressões, ele foi humilhado. Pois ele era um 'ex-colega'. Não sei se ele foi policial ou não, mas falavam isso toda hora para ele", declarou o torcedor.
Deslocamento ao hospital
Na noite de 1º de maio, os 12 detidos foram distribuídos nos porta-malas com grades de dois carros da Brigada Militar e levados ao Hospital Cristo Redentor. O espaço pequeno obrigou os presos a ficarem encolhidos, apertados e com dificuldade de respiração, conforme o relato do torcedor, e houve dificuldade para o fechamento da porta da viatura.
"No deslocamento para o hospital, estávamos que nem bichos. Éramos cinco na viatura e a porta não estava fechando, mas botaram o Rai por cima de mim. Era um por cima do outro. Nessa hora, o rosto dele tava perto do meu e ele não piscava o olho, só gemendo" garantiu o o torcedor, afirmando que eles receberam ameaças durante todo o deslocamento: "Falavam que iriam tirar nossa camiseta, nos largar em um lugar e dizer que éramos de outra facção. Sempre rindo. Também alavam que estavam esperando o final do jogo Inter (diante do Avaí, que havia começado às 21h daquela noite) para a torcida deles nos agredir."
Conforme imagens exclusivas obtidas por GZH, os detidos chegaram ao Hospital Cristo Redentor às 20h02min. Rai Duarte desce algemado da viatura número 11261, da Força Tática do 11º Batalhão de Polícia Militar, e chega a cair dentro do veículo.
"Quando chegamos no hospital, Rai foi o primeiro retirado. Os policiais disseram que iam parar de bater, pois haviam muitas câmeras. Eles diziam que nós não podíamos dizer que estávamos mal, pois eles sabiam o nosso endereço e nos ameaçavam", falou o torcedor ouvido pela investigação.
Segundo o testemunho, os torcedores que não aparentavam lesões mais graves não receberam o atendimento médico. Ameaçados pelos policiais, eles preferiram não relatar as lesões.
"Estava todo mundo machucado. Eu dizia que não estava escutando, mas eles diziam que não poderíamos falar. Minha mão estava inchada. Eles (policiais) estavam todo tempo do lado dos médicos. Se a médica se aproximasse de mim, ela veria que eu estava lesionado. Mas ela não foi até nós. Eles nos ameaçavam para não falar. Só foi atendido quem estava visivelmente machucado. Se eles se levantassem da cadeira e tirassem nossa camiseta, iriam ver as lesões", declarou em parte da oitiva.
Identificação dos policiais
O efetivo envolvido no jogo entre São José e Brasil-Pel não foi afastado da Brigada Militar. No entanto, conforme o corregedor, Vladimir Rosa, eles deixaram a força-tática (grupo que atua em eventos esportivos, por exemplo) e foram deslocados para outras funções.
Na parte final da oitiva, os interrogados receberam em mãos fotos dos PMs que participaram da ação — identificados por números. O propósito seria o reconhecimento daqueles que teriam agido com violência. Entre todas as imagens observadas, o torcedor interrogado identificou apenas uma policial mulher. Segundo ele, quem mais lhe agrediu era um homem que se identificada como "comandante". Entretanto, não soube identificar nas fotos, apenas citar as características.
Contraponto
Questionado sobre o que foi relatado por uma das testemunhas, o Corregedor-geral da Brigada Militar, Vladimir Rosa, preferiu não se manifestar. Segundo ele, houve um avanço na investigação, porém nada será revelado ou avaliado antes do desfecho do inquérito.
— Avançamos bem em vários pontos. Cada dia que passa, as investigações são cada vez mais esclarecedoras. Mas ainda temos muitas mídias para analisar. Então, enquanto o inquérito estiver acontecendo, nós não nos pronunciaremos. Essa é a única resposta que posso dar no momento — disse.
O Hospital Cristo Redentor disse que tem como premissa atender e cuidar da recuperação de todos os pacientes. E que também há ouvidoria para avaliar eventual conduta equivocada.
— No atendimento da emergência, temos o emergencista e, quando necessário, os especialistas. Não acredito que ele não tenha sido atendido de uma maneira adequada. O Hospital Cristo Redentor tem um atendimento de excelência, inclusive temos atendido causas extremamente graves. Temos o melhor setor de traumatologia do Sul. No caso do Rai, por exemplo, se não fosse nossa manifestação muito ágil, ele não teria condição de sobreviver — afirmou o Gerente de Internação do Hospital Cristo Redentor, Doutor José Accioly Jobim Fossari.