Nós iremos escutar que o ocorrido com o jogador Marega é um caso isolado que não representa a torcida do Vitória de Guimarães. E nós escutaremos também que o clube repudia qualquer tipo de ato racista e preconceituoso.
Até aí, segue o jogo, nada de novo na esfera futebolística. Não será surpresa que considerem este jogador negro desequilibrado porque não foi maduro o suficiente para perceber que aquelas ofensas fazem parte dos instintos dos torcedores. Escutaremos isso e muito mais porque, afinal, nada disso será considerado um comportamento racista que é um crime imprescritível e inafiançável.
Como já dizia seu Anibal, meu vizinho de bairro, eleitor convicto dos bons costumes, antes os negros apanhavam pelas costas e nem podiam reclamar. Agora, perdeu-se o controle com essa geração mimizenta que acha ruim até um xingamento bobo. Seu Anibal chegou a defender em público que desde que futebol é futebol isso é típico da cegueira dos que torcem com a alma.
O fato é que a Fifa tão sensibilizada criou uma cartilha de combate ao racismo e delegou poderes aos árbitros que, desde setembro de 2019, têm a responsabilidade de encerrar uma partida caso isso ocorra. E, vejam vocês, como é curioso a interpretação das orientações da cartilha por parte dos árbitros. A conduta tem sido dar cartão amarelo e expulsar os jogadores negros que se revoltam com os xingamentos racistas. Ou seja, a vítima se torna culpada e o culpados se tornam os injustiçados.
Seu Anibal anda revoltado com a audácia desses jogares. Além de ganharem uma fortuna, esses negros querem exigir respeito e ainda gritam. O que o seu Anibal desconhece, por ser branco, é que, em 2014, quando sofri o terceiro ato racista na arbitragem, o meu sentimento foi de solidão. Eu estava acompanhado por policiais que deveriam me proteger, mas o fizeram, pela federação — que se omitiu — e pelo clube, que foi negligente.
Seu Anibal também não sabe que o episodio Marega não é mais um caso isolado, segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Em 2014, foram registrados 20 casos. Em seguida, em 2015, foram 35. Em 2016, 25; em 2017, 43 casos; 2018, 44; em 2019, 56.
Por isso, peço ao Seu Anibal que observe atentamente os jogos do Campeonato Gaúcho e note que, depois que me desliguei em 2014, nenhum árbitro negro atuou no Estadual, o que me faz pensar duas coisas.
Primeiro: os casos considerados isolados ou peças sem muita importância montam um quebra cabeça gigante que revela um cenário racista. Segundo: os meus colegas árbitros têm um abacaxi nas mãos porque estão sem critérios definidos para discernir mesmo sem conhecimento entre injúria racial e crime de racismo no calor da partida e em sequência paralisar, suspender e encerrar o jogo.
Agora, cá entre nós, seu Anibal, me diga: o senhor teria coragem, como um árbitro branco sem adesão à causa, de encerrar uma partida nestas condições?
É... seu Anibal, temos muito o que conversar. Futebol é uma caixinha branca de surpresas.