Uma noite de sábado propícia para a prática esportiva em Doha. Os horários também eram considerados bons pelos amantes do futebol, às 17h e 19h. No entanto, o retrato de uma arena com capacidade modesta e, mesmo assim, com uma presença de público nada expressiva em dia de rodada dupla no mais importante torneio de futebol do Catar contrasta com o projeto ambicioso que o país organiza para a Copa do Mundo de 2022.
No estacionamento do Estádio Abdullah bin Khalifa, casa do Al Duhail, apenas a movimentação de um solitário vendedor ambulante em busca de uma alma viva capaz de comprar uma flâmula ou bandeirinha. Sua presença se sobressaía em relação a meia dúzia de torcedores que chegavam silenciosos.
— Al Duhail, Al Sadd, Al Gharafa e Al Rayyan — gritava o comerciante, de aproximadamente 50 anos, anunciando as alcunhas de seus produtos.
Nem a presença do espanhol Xavi Hernández, ex-Barcelona, entusiasma o tímido povo local. Em campo, o segundo confronto do dia 30 de março era uma "final antecipada". Al Sadd e Al Duhail disputaram um jogo que poderia modificar a tabela da Qatar Stars League (QSL), o Brasileirão deles, a três rodadas de seu fim. Mas nem mesmo isso, nem o fato de ambos os times contarem com boa parte da seleção catari campeã da Copa da Ásia, lotou a praça esportiva que tem capacidade para 12 mil torcedores. A partida acabou empatada em 2 a 2 e, cinco dias depois, o Al Sadd de Xavi sagrou-se campeão da primeira divisão do Catar.
Na primeira partida, entre Al Gharafa e Al Rayyan, duas tradicionais equipes cataris, a torcida era praticamente insignificante. Não há números oficiais de público divulgados pela QSL, mas dificilmente a presença nos estádios passa de 500 pessoas. Temporada passada, a média arredondada foi de 100 torcedores por jogo. O preço do ingresso é barato: o normal custa 10 riais catari, que possui cotação muito parecida com a do real. Já o camarote sai por 20 riais catari.
— O país está começando a criar uma paixão pelo esporte em si somente agora. Não há uma cultura no país igual tem no Brasil, que quando uma criança nasce já ganha uma bola. Não tem isso aqui. É um país que está engatinhando para o futebol ainda — revelou o brasileiro Lucca Borges, atacante do Al Rayyan, ex-Inter e Corinthians.
A liga do país conta com 12 equipes, com jogos, na maioria das vezes, apenas uma vez por semana. O calendário do futebol catari nem se compara ao brasileiro. Enquanto um time pode entrar em campo mais de 70 vezes por ano no Brasil, no Catar esse número não chega nem a 30 partidas.
— São sete meses aqui, sete meses de qualidade de vida. Não quero voltar ao Brasil nem quando eu parar de jogar, minha família se adaptou muito bem. O país é muito tranquilo. No Brasil, você não vive. Você se dedica extremamente ao futebol, pouco à família, pouco ao estudo, e ainda não recebe. Aqui, eu trabalho bem, o nível não é alto, mas acho que vai melhor por causa da Copa. Você vai conseguindo fazer coisas que antes não conseguia fazer no Brasil. Aqui, eu consigo brincar com meus filhos e me dedicar à família, além de continuar jogando bola — desabafou o meia Wagner Santos, ex-Fluminense e atualmente no Al Khor.
Aos 29 e aos 34 anos, Lucca e Wagner são a imagem da presença brasileira no futebol do Catar. Em uma estadia de sete dias em Doha, a reportagem teve a oportunidade de conversar com outros sete jogadores do Brasil que atuam em solo catari, e algumas semelhanças se replicam: todos possuem mais de 28 anos e buscam a "tranquilidade" e estabilidade que não encontram no futebol brasileiro.
— Os cataris gostam muito de tomar seu chá na frente da TV com a família toda reunida, no tapete, com sua almofadinha. Isso é cultural deles. Aqui, não tem ação de marketing para trazer torcida. Então, com a Copa, pode acontecer uma reviravolta nessa cultura deles — analisou o meia.
É justamente esse o motivo informal para os estádios estarem vazios: o povo catari gosta de observar o futebol. A resistência de deixar o conforto de suas casas e viver a experiência das arquibancadas ainda é grande. Assistir pela televisão seria mais interessante pelo ponto de vista da população local.
O governo do Catar reconhece e tenta driblar essa cultura em suas terras. Diante de um planejamento grandioso para o Mundial de 2022, usa o legado como palavra-chave. A ideia é apresentar a emoção de torcer nos estádios e manter o rito após a Copa deixar o país.
— É muito difícil organizar esse torneio de forma com que as instalações tenham valor para a sociedade. Queremos que nossa sociedade conheça e goste de estar nos estádios, e a Copa é uma grande oportunidade para isso — explica Khalid Al-Naama, porta-voz do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2022.
O fato de a família real ser fã do esporte, a ponto de comprar o Paris Saint-Germain há quase uma década, pode ajudar a popularizar o futebol durante o Mundial. A conquista da Copa da Ásia em fevereiro e o convite para disputar a Copa América no Brasil são considerados fatores importantes para impulsionar a modalidade até 2022.
— O Catar vai estar representando na Copa América todos os outros 22 países árabes, isso traz importância para nós. Os brasileiros adoram futebol, espero que torçam para a gente contra os outros times. Esperamos que estejam lá conosco — disse esperançoso Khalid Mubarak, diretor de marketing e comunicação da Federação de Futebol do Catar.
Mulheres nos estádios
As mulheres cataris não são impedidas de irem aos estádios. Muito pelo contrário. Elas, inclusive, podem escolher o setor que se sentirem melhor para torcer: seja nas organizadas ou em um lugar mais "tranquilo" para apreciarem a partida.
É muito raro observá-las sem seus trajes típicos árabes. Todas vão ao estádio vestidas de preto dos pés a cabeça — as mais conservadores deixam apenas os olhos de fora. Não é proibido usar camisas de clubes, mas o hábito não é cultural entre elas — nem entre os homens.
Normalmente estão em família, com os filhos e muitas embalagens de comida.
— Aqui, não existe fanatismo. Eles (torcedores) sempre apoiam, não importa qual a situação no campeonato. Para eles, o futebol é um hobbie — revela o meia-atacante Rodrigo Tabata, ex-Santos, que joga no Catar desde 2011 e foi convocado para defender o país em 2016.
*A repórter viajou a convite da Federação de Futebol do Catar