Deu tudo certo na cirurgia para reconstrução, com parafusos e placas de titânio, da mandíbula quebrada de Miller Bolaños. Ele já está com a família, que veio de Guayaquil, não terá sequelas de espécie alguma e voltará a jogar como se nada tivesse acontecido.
Como o jovem equatoriano ficou esquecido na grenalização (literalmente: tudo se deu no Gre-Nal) furiosa que se seguiu ao lance entre ele e William, permito-me erguer o dedo em meio à pancadaria para lher desejar sorte e pronta recuperação. As redes sociais explodiram aos palavrões após a o Gre-Nal.
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Vídeos de William e Bolaños aplicando cotoveladas em outras partidas se espalharam. Dirigentes viraram o fio com argumentos juvenis e, quando as consequências caminhavam para o nebuloso terreno do imprevisível, os jogadores agiram. Roger, Edinho, Alisson e Alex aliviaram os ânimos com declarações bem colocadas. Apagaram o fogo perto de o caldo entornar.
Episódios que envolvem rivalidade, com o da agressão de William a Bolaños, produzem um fenômeno curioso. Trata-se do ódio seletivo. E também da ética seletiva. Os dois aparecem juntos, em maior ou menor medida. O sujeito odeia, mas para não dar muito na vista, já que intolerância pega mal, maquia. Enquanto a saliva espuma pelos cantos da boca, ele fala em justiça, coragem, união, solidariedade.
Assim, faz parecer que não é que odeie só por ser de outro time: trata-se de princípios de humanidade. E, sem eles, o mundo está perdido. Vira um samba atravessado de argumentos, mas nessas horas de grenalices não dá para exigir muito ritmo e afinação. Tomemos como exemplo dois casos em que os errados, sem sombra de dúvida, foram um gremista e um colorado.
Patrícia Moreira chamou o goleiro Aranha, que é negro, de macaco. Foi naquele jogo na Arena, entre Grêmio e Santos, pela Copa do Brasil. Uma injúria racial clara, flagrada pela TV, sem discussão. Os exércitos se ergueram de um lado e outro. A ética e o ódio seletivos emergiram, do mesmo jeito que agora.
Você lembra. Gremistas diziam que era um absurdo o que os colorados estavam fazendo com a torcedora, pobrezinha. Uma mulher adulta mas, puxa vida, ela foi só no embalo dos outros. Quem nunca? A certa altura, o vilão virou o próprio Aranha. Um provocador malandro, que não sossegou até arrancar insultos para tirar vantagens indevidas e se promover, enganando jovens inocentes. Estão tentando criminalizá-la como se fosse uma assassina – era o discurso de muitos gremistas à epoca, e não só da gurizada do Twitter. Que país é esse, capaz de permitir algo assim? E as instituições, onde estão as instituições?
Eram só gremistas defendendo uma gremista pelo simples fato de torcerem para o mesmo time, como se isso fizesse alguma diferença. Assim como os colorados agora defendem William só por ele ser colorado. Então ele é um garoto incapaz de um gesto de desatino. Os gremistas tentam demonizá-lo, mas quando a suposta demônia era Patrícia, uma gremista, aí era errado.
Pensando bem, analisando o Gre-Nal pela ótica colorada, a culpa deve ser do Bolaños. Vai ver ele transformou um carinho de William em fratura, por ter ficado em campo até o intervalo. Aliás, a lesão aconteceu ali mesmo? Haja paciência.
No Caso Aranha, os colorados clamavam por justiça, em nome da igualdade de cor, credo e raça. Era preciso defender a constituição e banir os racistas dos estádios. A punição tinha de ser exemplar. O país iria aprender como é que se faz. Quem sabe abrir uma Lava-Jato do racismo no Grêmio? Madre Pelletier para Patrícia, mesmo que ela tenha pedido desculpas e admitido o erro.
As mesmas desculpas que William corretamente pediu a Bolaños, reconhecendo a sua atitude condenável, sem ser ouvido pelos gremistas. E que os colorados elogiam como gesto de grandeza, embora as de Patrícia para Aranha soassem falsas. É o ódio seletivo, que muda conforme a camiseta. Perde-se completamente o foco. É insano.
William agrediu, tinha de ser expulso e deve receber pena do tamanho de seu ato para que nunca mais repita. Não matou, não roubou, não pagou propina, não é alvo do juiz Moro. Patrícia não roubou, não matou, não desviou dinheiro da Petrobrás. Não precisa de condução coercitiva. Patrícia tinha de ser criticada severamente e punida pelo seu ato horroroso, como de fato foi, conforme a lei define para quem pratica injúria racial. Ponto.
Como podem as convicções e o entusiasmo mudarem só em razão do time pelo qual se torce? Tenho a solução para o grande problema do Brasil, que é a educação, cujo emblema é o salário de fome dos professores. E a tendência é só piorar: quando nossos educadores reclamam de ganhar tão pouco, ainda por cima são criticados. Tenho também saída para a insegurança e a corrupção. Bastaria a energia popular dispensada em um único lance de Gre-Nal ser transferida para temas relevantes. Duvido que, sem ética ou repúdio seletivos, os governos não se mexessem rapidinho.
*ZHESPORTES