Não era uma maravilha o clima na concentração do Inter em 27 de setembro de 2002, quando o técnico Celso Roth, depois da janta, mandou chamar os dois goleiros ao seu quarto. João Gabriel e o reserva Luiz Müller já se preparavam para dormir.
- Amanhã é o Luiz que vai jogar - sentenciou Roth, sentado na cama, e João Gabriel sentiu a barriga gelar.
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Percebeu que o ostracismo, a partir dali, era um caminho previsível. Afinal, o titular de verdade nem era mais - João Gabriel havia jogado com a camisa 1 por quase duas temporadas, mas perdera a posição para Clemer, que agora estava lesionado -, portanto, na prática, o técnico o empurrava para terceiro goleiro.
Voltou para a cama destruído, era como se uma rasteira o tivesse derrubado. Havia treinado duro a semana inteira, e aí, por decisão de uma única pessoa, seu futuro estava em risco aos 24 anos de idade? Achava uma injustiça.
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No dia seguinte, com Luiz Müller no gol, o Inter perdeu para o Paraná por 2 a 1 no Beira-Rio. No banco de reservas, João Gabriel nem se dava conta, mas já começava a trocar de profissão.
Mesmo quando era titular do time, nunca deixou de frequentar a faculdade de Direito: estimulado pelos pais - um médico e uma enfermeira -, conseguia frequentar a Ulbra às segundas, terças e quintas, embora muita gente no clube nem soubesse das aulas.
- Não existia, e nem existe ainda, muito apoio para o jogador estudar. Eu ia tocando a faculdade como dava, porque a prioridade era o futebol - relembra o ex-goleiro, hoje aos 35 anos.
A campanha no Brasileirão era medonha: Roth foi demitido, veio Cláudio Duarte e, no ano seguinte, Muricy Ramalho. Não adiantou nada para João Gabriel - pelo contrário, só piorava. Havia três goleiros à sua frente, ele nem era relacionado para os jogos, nenhuma proposta de outro clube avançava.
Sem qualquer motivação, os treinos viraram um sacrifício. João Gabriel tornou-se um homem triste, não tinha mais empenho para brigar pela vaga que um dia fora dele. E resolveu aumentar o número de cadeiras na faculdade.
Atirado nos livros, o goleiro foi construindo aos poucos um grupo de amigos fora do ambiente da bola. A vida ganhava novo incentivo, até que o Mogi Mirim o convidou para disputar o Campeonato Paulista de 2005. Decidiu topar - já estava terminando o curso de Direito, só pediu para o presidente liberá-lo no dia da formatura.
- Eu queria ver se recuperava a ambição em outro clube. Precisava saber se o problema era o Inter ou era eu - recorda ele.
João Gabriel até foi bem no Mogi, mas a rotina de treinos, a preparação para os jogos - "A concentração é um saco, não tem nada para fazer: o cara pensa mais no que fará depois da partida do que na partida em si" -, tudo aquilo o irritava. Percebeu também que nenhum goleiro com menos de 1m90cm dava certo em grandes clubes. E ele só mede 1m84cm.
No último jogo, contra o São Paulo, sua mãe foi até Mogi Mirim assistir à partida. Foi dona Lídia quem levou João Gabriel pela primeira vez ao Inter, quando ele tinha nove anos - e ela agora queria presenciar a despedida do filho, aos 27.
Voltaram juntos para casa, em Porto Alegre, e no mês seguinte João passaria na prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A mulher, Thiana, engravidaria em seguida do filho, Eduardo.
- Não tive tempo para me arrepender. Sinto falta das brincadeiras com o time, do assédio da torcida, mas realizado de verdade eu estou agora - conclui o ex-goleiro, sócio de um escritório especializado em defender jogadores de futebol.
A hora de parar
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Paulo Germano
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