Uma geração de talentos colorados entrava em sua última categoria de base apanhando para o Grêmio. Pudera, o time adversário tinha uma dupla infernal: Ronaldinho e Paulo César Tinga. Para a temporada de 1997, a direção colorada resolveu apostar em um técnico do sub-15 que vinha de São Paulo e dar a ele a responsabilidade de comandar o time júnior. Era um time forte fisicamente, mas que não tinha grande cultura tática ou virtuoses técnicos. Pois Guto Ferreira, então com 30 anos, resolveu mudar essa situação.
Leia mais:
Novo posicionamento de William Pottker é a novidade em treino do Inter
Guto prioriza bola aérea defensiva em primeiro treino com os titulares no Inter
Guto Ferreira mantém base de Zago e define Inter com Uendel no meio-campo
Em treinos de quase três horas, ensinou aquele bando de jogadores fortes a se posicionar. Mas não foi essa a novidade: com bolinhas de tênis e viseiras, aprimorou a habilidade. A ordem era jogar e se divertir com responsabilidade. O resultado foi imediato. Aquela turma de Lúcio (capitão da Seleção e mais de 10 anos em gigantes como Bayern, Inter de Milão e Juventus), Diogo Rincón, Claiton, Fábio Pinto, o centroavante Manoel, mais o atual auxiliar Odair Hellmann e outros foi campeã gaúcha já no primeiro ano. E em janeiro de 1998, venceu a Ponte Preta de Luís Fabiano para levantar a Copa São Paulo de Juniores.
– Naquele ano, vi como um técnico deve se comportar. Eu era titular no Gauchão e perdi a vaga para o Odair, que tinha descido para os juniores para jogar a Copinha. Fiquei brabo, pensei em parar. Então o Guto falou comigo: "Preciso pensar no melhor para o time, mas fica tranquilo que a tua hora vai chegar". Acabei jogando quase todos os jogos – lembra o ex-volante Claiton, que se derrama em elogios ao novo comandante colorado.
Ibsen Pinheiro era o vice de futebol daquele ano. Estava em São Paulo durante a Copa São Paulo.
– Ali vi um futuro técnico, que só precisaria de experiência para estourar. É um obstinado, um estudioso, um detalhista – revela o ex-dirigente.
O título da Copa SP deu estofo ao treinador, que virou membro da comissão técnica permanente do Inter. Conviveu com nomes tipo Leão e Carlos Alberto Parreira. Em 2002, uma bomba caiu em seu colo. Ivo Wortmann caiu em meio àquele estranho Gauchão de poucos jogos para a Dupla, e Guto Ferreira foi alçado aos profissionais. Precisava vencer o São Gabriel para ir às finais. Venceu. Na decisão, ganhou a ida e a volta do 15 de Campo Bom e conquistou um troféu estadual.
No início daquele Brasileirão, porém, teve um problema. Ao tirar o centroavante Fernando Baiano no intervalo de uma partida, gerou descontentamento no jogador. A discussão áspera só não virou coisa pior porque o então auxiliar Lisca impediu, segurando o atleta. Guto havia sido engolido, e dava lugar a Celso Roth.
Sua carreira deu uma regredida: oscilou entre rodar por clubes menores ou ser auxiliar. Passou um tempo em Portugal, treinando Naval e Penafiel. Mas voltou ao Inter, para a aproveitar a convivência com os campeões mundiais Abel Braga e Tite.
– Aprendi muito com eles. O Inter me deu muitas oportunidades – comentou o treinador na entrevista de apresentação.
Essa relação com o clube entrou em sua casa. Os dois filhos são colorados, inclusive vieram ao Beira-Rio para a final da Libertadores.
Mas a hora era de saltos maiores, ser, enfim, treinador. Guto foi para o Mogi Mirim. E tomou uma decisão que mudou a carreira: convidou André Luís, ex-zagueiro e lateral-esquerdo do Inter para ser seu auxiliar. André tinha comandado
São Paulo-RG, Brasil-Pel, Glória e outros. Aceitou.
– O André Luís era um dos raros jogadores que compreendia o futebol como um esporte coletivo. Ele não jogava só pelo instinto e pelo reflexo, como faz a maioria – recorda-se Ibsen.
A experiência de vestiário de um ex-jogador foi o balanço que precisava o estudioso Guto para aumentar seu controle sobre os comandados. A organização tática, a filosofia de jogo, o aprimoramento técnico e a capacidade física estavam dominadas.
– Só faltava mesmo era algum boleiro. Ali, a carreira dele alavancou. Juntou um perfeccionista, que cobra bastante, com um conhecedor de vestiário e de jogador – afirma Claiton.
E essa união funcionou já no começo. No Mogi Mirim, em 2012, ficou em sexto lugar no Paulistão. Perdeu as quartas para o Santos de Neymar. Mas no Troféu do Interior, venceu Oeste e Bragantino e conquistou o título. O destaque desta equipe era Hernane Brocador, que iria para o Flamengo pouco depois – e se juntaria a Guto no Bahia.
No segundo semestre, o técnico teve seu primeiro acesso. Na Série D, seu Mogi Mirim obteve classificação para a terceira divisão nacional.
A visibilidade o levou à Ponte Preta – e à primeira divisão pela primeira vez desde a saída do Inter (em 2008, comandou alguns jogos no período em que o clube havia perdido Abel e acertava o contrato com Tite). Fez uma campanha acima das expectativas da equipe campineira, garantindo vaga na Copa Sul-Americana do ano seguinte. No Paulistão, chegou a ficar 13 rodadas invicto.
– Pelo trabalho que tivemos lá na Ponte, posso falar: Guto Ferreira é um dos técnicos mais importantes do Brasil. Ele é qualificado, sabe muito da parte tática. Explica tudo aos jogadores, não deixa nenhuma dúvida – elogia o então zagueiro pontepretano Ferrón, hoje no Criciúma.
Segundo ele, não houve qualquer problema no vestiário, e a harmonia foi garantida com profissionalismo:
– Guto não é desse estilo de passar mão na cabeça de ninguém. Isso até pode ser estranho para o jogador brasileiro, que gosta de ser paparicado. Mas o Guto não é assim. Ele é profissional.
Da Ponte, foi para a Portuguesa e viveu um drama. Depois de muito trabalho, salvou a equipe do rebaixamento em campo. Mas um erro administrativo – até hoje não explicado – derrubou a Lusa.
No Figueirense, viveu sua primeira experiência longe do interior paulista – e também um fracasso (inclusive admitido pela comissão técnica). Em pouco mais de dois meses, não conseguiu desenvolver sua metodologia. E o resultado em campo não ajudou. Após a eliminação para o Bragantino na Copa do Brasil, foi substituído por Argel Fucks.
– Aquela época era difícil. Lembro que ele trabalhava sério, o mesmo estilo dos tempos de Inter, quando o conheci. Mas nada dava certo, infelizmente – diverte-se o ex-lateral-esquerdo Kléber, jogador de Guto no Inter e no Orlando Scarpelli.
De volta à Ponte, encontrou uma missão ingrata. A equipe ocupava a parte de baixo da tabela da Série B. Não cair seria lucro. Mas a reação foi muito maior: foi vice-campeão, um ponto atrás do Joinville, e voltou ao Brasileirão.
Uma nova aventura catarinense lhe aguardava. Após ser demitido da Ponte, recebeu convite da Chapecoense. Sobreviveu ao Brasileirão e começou a temporada de 2016 com o título estadual. Fazia um Brasileirão seguro, quando recebeu um convite do Bahia para salvar o clube da Série B. Era a 13ª rodada, e a 14ª posição. Acabou em quarto.
No final do ano, o Corinthians lhe procurou. Mas a multa rescisória e a vontade de ficar no Bahia afastaram a negociação. Domingo passado, porém, não soube dizer não.
O Inter ligou. E aquela Copa São Paulo de 19 anos atrás, o título de 2002, a convivência com Parreira, Tite e Abel e a preferência dos filhos fizeram a diferença. Vinte anos depois, Guto Ferreira não é mais o auxiliar, o interino ou a aposta.
Quem estreia neste sábado, às 19h, contra o Juventude é Guto Ferreira, o novo técnico do Inter.