Pode parecer contraditório, mas o novo Beira-Rio está entre as razões que fizeram o Inter cumprir a derrocada entre o sonho do bi mundial em Abu Dhabi e a luta contra o rebaixamento em Edson Passos, na Baixada Fluminense.
O formato do negócio para a reforma do estádio provocou um racha na alta cúpula do clube. As fissuras seguem expostas ainda hoje e alimentam ressentimentos de quem nos anos dourados do clube festejou junto. Pode-se apontar, sem qualquer receio de erro, que a efervescência política corroeu os alicerces do Inter e abriu o caminho para esse domingo na calorenta e violenta Baixada Fluminense.
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A eclosão política do Inter tem dia e hora. No início da tarde de 10 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, o presidente eleito cinco dias antes, Giovanni Luigi, e seu vice e fiel escudeiro Luiz Anápio Oliveira procuraram Vitorio Piffero para uma reunião em Abu Dhabi para tratar da reforma do estádio e tentar impedir o início da demolição das sociais, marcados para dali a alguns dias, na segunda-feira, véspera da estreia no Mundial contra o Mazembe.
O ambiente no suntuoso Beach Rotana era de empolgação. Torcedores que haviam viajado para os Emirados Árabes transitavam pelo hotel orgulhosos e dividiam espaço com conselheiros e dirigentes. Luigi e Anápio encontraram em um dos bares à beira da piscina e com vista para uma praia particular o sossego para tratar com Piffero da reforma do Beira-Rio.
Esse era um assunto caro ao então presidente. Além de construtor, ele havia elaborado o projeto de reforma do estádio. A ideia havia surgido no verão anterior. Veranistas em Atlântida, no Litoral Norte, dirigentes e conselheiros mais próximos costumavam se encontrar para bate-papo e algumas cervejas no Bar do Tato, endereço tradicional da praia.
Em um sábado, quando a conversa enveredou para uma remodelação do Beira-Rio, Piffero disse já ter o projeto na cabeça: 100 camarotes vendidos a R$ 1 milhão e os R$ 26 milhões da venda do Eucaliptos dispensariam qualquer necessidade de buscar recursos fora do clube. A questão é que o plano estratégico traçado por Luigi e Anápio descartava a reforma com recursos próprios.
Os dois já tinham conversas com a Andrade Gutierrez e uma outra construtora. Acreditavam que a parceria seria a melhor saída. O isolamento no bar do Rotana Beach parecia ideal para tratar do assunto. Só parecia. O tom da conversa subiu como o calor de Abu Dhabi. Até que, em determinado momento, Piffero intimou seu sucessor para que decidisse. Diplomático e evitando agravar a crise, Luigi cedeu e consentiu com a demolição. Mas já era tarde.
Estava evidente o racha no Inter Grande, o principal grupo da base política arquitetada por Fernando Carvalho desde 2001. Essa base, aliás, já havia se esfacelado antes mesmo do embarque para Abu Dhabi. A linha sucessória no comando do clube havia sido acertada com Luigi assumindo em 2011 e Pedro Affatato, do grupo União Colorada, em 2013.
Só que Affatato se lançou candidato contra Luigi na eleição. Temia pelo futuro do seu grupo com o acordo de aliança para a eleição majoritária e chapas separadas na renovação do Conselho. O União Colorada precisava renovar 23 das suas 56 cadeiras. A estratégia foi lançar um candidato e aproveitar a exposição dele na mídia para canalizar votos para o Conselho.
– Havia o risco de não renovarmos nossas cadeiras, e nem eu entraria no Conselho. Fora dele, como seria presidente em 2012? – indaga Affatato.
A campanha foi fratricida, com acusações em spots de rádio e troca de farpas via imprensa. Diante desse cenário, Luigi assumiu com a estabilidade política jogada pelos ares em um momento no qual a reforma do estádio exigia a unidade do clube. O ex-presidente ainda hoje mostra ressentimento com os debates travados no Conselho no período em que as tratativas com a Andrade Gutierrez se arrastavam.
– Nenhum presidente levou tanta batida com eu. Se tu assistisse a uma reunião do Conselho, iria ficar impressionado com a forma como se agia. E mesmo assim conseguimos construir o estádio e manter o time, com todas as dificuldades de passar por Novo Hamburgo e Caxias – desabafa Luigi.
O ex-presidente contesta a hipótese de que o ambiente político interfira no futebol. Acredita que os bastidores do clube e o vestiário são mundos sem conexão direta. Também reage com veemência ao ser indagado sobre a ponte na qual o Inter ligou Abu Dhabi a Edson Passos.
– Com todo o respeito sou frontalmente contra esse posicionamento. No fim de 2014, havia um estádio quitado e uma Libertadores para ser jogada. Não tem absolutamente nada a ver, é uma questão desta gestão. Especificamente deste ano de 2016 – observa Luigi.
A última eleição, no entanto, mostra o quanto o clube se dividiu. Piffero, que nunca deixou oficialmente o movimento Inter Grande, juntou-se ao União Colorada e ao Ação Independente, reforçados pelo Convergência, para encarar Marcelo Medeiros. Na eleição deste sábado, o adversário de Medeiros será Affatato, que mesmo vice de Piffero se apresenta como oposição.
Muitos grupos deram origem a outros menores. A prova do esfacelamento político está nesta eleição de renovação do Conselho, em que nove chapas concorrerão. Com ou sem contaminação da efervescência política, o fato é que o futebol do Inter repetiu equívocos ao longo destes últimos seis anos.
Investiu pesado em medalhões, inflou a folha salarial e, numa prova de apego ao passado, recontratou ídolos de 2006, mesmo que muitos deles já estivessem com o mesmo viço. Um olhar mais atento detecta que o Inter perdeu capacidade de garimpagem no mercado. Com os cofres reforçados e a renda de mais de 100 mil sócios, o clube passou a gastar mais. E também a errar mais.
O mais emblemático deles está na figura de Rafael Moura, comprado com 29 anos ao Fluminense, com contrato de quatro anos e salário de R$ 450 mil. Luciano Davi, articulador político de Luigi em 2011 e vice de futebol em 2012, reconhece alguns equívocos em contratações.
Mas os aponta como inerentes ao risco de se fazer contratações. Responsável por trazer Forlán, eleito dois anos antes melhor jogador da Copa, admite que esperava mais do uruguaio. Mesmo sem a resposta esperada, diz que um jogador desse porte dava ao time o estofo que faltou à equipe de 2016.
– A gente tentou montar uma espinha dorsal de jogadores veteranos e subimos alguns jovens. Essa gestão não trouxe jogadores de mais estofo, acho que isso foi um grande diferencial – observa.
A vinda de nomes consagrados deu estabilidade, mas também tomou o espaço para o surgimento de novos jogadores. Atrás numa fila com tantos medalhões no Beira-Rio, Ricardo Goulart e Lucas Lima foram emprestados para Goiás e Sport e depois brilharam no Cruzeiro e no Santos. Marquinhos Gabriel saiu em 2011 e ganhou o mundo até reaparecer na Vila Belmiro.
Marinho, hoje algoz no Vitória, foi outro que nunca mereceu muita atenção no Beira-Rio. Sasha, em 2014, só ganhou chance com Abel Braga por lesões de Jorge Henrique e Alan Patrick.
Havia um clamor no Beira-Rio pelo rejuvenescimento do grupo. A atual direção adotou-o como bandeira em seu segundo ano de gestão. Alegava também necessidade de baixar a folha salarial, que bateu nos R$ 9 milhões. Só que radicalizou na fórmula.
Dispensou nomes rodados, como D'Alessandro, e apostou em todos os guris ao mesmo tempo. Restou apenas Alex, de 34 anos, mas sem espaço no time até a saída de Argel, cujos resultados positivos dos primeiros meses nunca se traduziram em rendimento do time. Em determinados jogos, Paulão, 30 anos e novo líder do vestiário, era o mais velho em campo.
O que talvez explique a crise nervosa do time quando os resultados ruins se sucederam até completar 14 jogos sem vitória com três técnicos diferentes. É consenso entre torcida e conselheiros que, em 2016, o Inter acelerou fundo na reta final de uma estrada em que conseguiu a inverossímil conexão entre Abu Dhabi e Edson Passos. O fim dela será conhecido às 19h - ou até antes - deste domingo, na Baixada Fluminense.
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