Quase nada se move em uma tarde chuvosa no pacato Nova Milano, distrito de Farroupilha, na serra gaúcha. O barulho da água desabando diante de dezenas de casas antigas no local conhecido por ter abrigado os primeiros imigrantes italianos no Rio Grande do Sul é quebrado apenas pelo burburinho dentro da Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Cruz. Conversas, cantoria e gritos de crianças injetam vida nos corredores do casarão de dois pavimentos construído há mais de 90 anos na serra gaúcha.
– As turmas estão menores hoje (a reportagem de ZH visitou a escola segunda e terça-feira da semana passada) porque alguns alunos não conseguiram sair de casa. Parece que a chuva interditou a saída do "Caravagginho" – comentou a vice-diretora da Santa Cruz, Luciana Zanfeliz.
Leia mais:
Família tem quatro gerações de alunos da Escola Santa Cruz
Aluna da Escola Santa Cruz conseguiu vaga em disputada escola carioca
Ensino Médio do RS cai em avaliação e tem pior desempenho desde 2005
Melhor escola do Rio Grande do Sul nas séries iniciais do Ensino Fundamental no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2015, com nota 8,7 (3,2 pontos acima da média estadual), e terceira melhor nas séries finais, atrás apenas dos colégios militares de Porto Alegre e Santa Maria, a instituição abarca um público cada vez mais diminuto no país, no Estado e no próprio município: a população rural. Se nas três esferas esse volume fica em torno dos 15%, nas salas de aula da Santa Cruz, a proporção é outra. Sete em cada 10 alunos residem em Nova Milano, e muitos deles provêm de localidades que integram o distrito – entre elas o "Caravagginho"–, onde o ganha pão das famílias vêm principalmente da agricultura e da suinocultura. Mas a desproporção já foi ainda maior em anos passados. A boa fama da escola atrai cada vez mais "estrangeiros", que ficam com as vagas que não são ocupadas por moradores do distrito.
Dos hábitos simples e de valores primordiais da comunidade local surgiram alguns dos princípios mais compartilhados no dia a dia da escola. Cooperação, humildade, respeito e disciplina dão o tom da rotina. O afeto tempera relações entre direção, alunos, professores e funcionários.
– É um pessoal bastante unido, né? Todo mundo ajuda com alguma coisa. Eu não tenho vergonha de dizer que já passei a tarde pregando forro do teto aqui. Investir no colégio é melhor do que investir na casa da gente, porque é a segunda casa dos nossos filhos. Se for um lugar bom, ajuda no aprendizado – avalia o agricultor Clemente Valandro.
Pais envolvidos no dia a dia da escola
Na semana chuvosa que marcou meados de outubro, o atual presidente do Círculo de Pais e Mestres (CPM), morador da Linha São Miguel, viu-se forçado a interromper a colheita de laranjas e bergamotas por causa do mau tempo. Em contrapartida, fez visitas mais frequentes à escola para ajudar a planejar a festa de fim de ano e ver se havia algum problema estrutural a ser remediado. Ao olhar estrangeiro, o local parecia impecável: ambiente limpo, biblioteca recheada de livros, brinquedos em estado de novos. Funcionários trabalhavam na iluminação nova do ginásio de esportes. Alguém mencionou uma goteira e Clemente ficou de providenciar o conserto.
Fundada por religiosas na década de 1920 e assumida pela prefeitura nos anos 1970, a instituição é uma referência na comunidade, que retribui na mesma moeda, trabalhando para que o local seja propício ao ensino e ao desenvolvimento de quase 400 estudantes, do pré ao 9º ano. As famílias se envolvem em quase tudo: desde a organização de festas e eventos – vários deles abertos ao público – até melhorias na estrutura física do prédio. Mutirão para limpar o pátio da escola, seguido de salchipão, é programa comum aos finais de semana.
– Existe um sentimento de pertencimento muito presente. E todo mundo se conhece, vários pais estudaram nessa escola. Recentemente, no meu aniversário, uma aluna trouxe um pacote de torresmo de presente, porque o pai dela tinha sido meu aluno e lembrava que eu gostava – diverte-se a diretora Flávia Zanfeliz Zangalli.
Presente desde onde a memória dos mais antigos alcança, a contribuição extraclasse da comunidade tem se intensificado com o passar do tempo. Nos últimos anos, com a verba arrecadada através da colaboração mensal voluntária dos pais, foi instalado um sistema de monitoramento com mais de 15 câmeras, além de splits e smartvs em quase todas as salas de aula – como as compras só são feitas com o dinheiro que há em caixa, a modernização ocorre aos poucos. A Santa Cruz é sede das reuniões do Clube de Mães de Nova Milano, e participa da organização alguns dos principais eventos do distrito, como um bingo anual e a já tradicional festa de Natal que mobiliza milhares, envolvendo igreja, clubes e comunidade escolar.
Diretoras gêmeas e foco em deficiências
Se a escola sempre se destacou no quesito interação comunitária, a boa qualidade do ensino refletiu-se em números apenas bem mais tarde. O período coincide com o início de uma dupla gestão que compartilha, além de ideias, uma marca genética: Flávia e Luciana – diretora e vice-diretora, respectivamente – são irmãs gêmeas univitelinas.
Foi na gestão da atual vice, em 2006, que a escola recebeu os resultados da primeira Prova Brasil, exame que o Ministério da Educação (MEC) tinha aplicado aos alunos em 2005. A nota, um modesto 5,8, intrigou Luciana.
– Nós não fomos bem naquele ano. Quando chegaram os resultados, fui ler os descritores para tentar entender quais eram as deficiências dos alunos, e como a gente podia abordar isso no cotidiano. Começou com coisas bem básicas, como ensiná-los a transpor o gabarito para a grade, que eles tinham dificuldade – lembra.
Como a escola não recebe as questões do exame nem tem acesso ao desempenho individual dos alunos, a direção contou com relatos dos que fizeram a prova para descobrir que tipo de dificuldades eles identificavam na avaliação do MEC, focada em português, matemática, interpretação de texto e raciocínio lógico. O mapeamento começou a ser usado para planejar as aulas, mas não a tempo de virar o desempenho das crianças que fizeram a prova em 2007, quando a escola ficou com 5,7.
Foi em 2009 que os números começaram a mostrar que a Santa Cruz estava encontrando o caminho. Naquele ano, a nota foi 6,1. Como não havia quórum em 2011, as séries iniciais da escola de Nova Milano só prestaram o exame novamente em 2013, quando a estratégia já estava consolidada. Veio um 8,0. O 8,7 do ano passado foi brindado com festa na comunidade.
O engajamento dos professores é fundamental para o sucesso do que se tornou uma missão da Santa Cruz: superar a si mesma a cada par de anos. Planejamentos em dupla ou mesmo em conjunto resultaram em abordagens interdisciplinares dos conteúdos. Assim, uma questão matemática que envolve planificação de sólidos – assunto que os alunos não dominavam bem –, por exemplo, começou a aparecer em aulas de artes como coloridas formas geométricas e nos períodos de língua portuguesa, onde a nomenclatura foi lembrada e relembrada.
– Passamos a encarar esse número (da Prova Brasil) como um balizador, e também como um motivador para os nossos alunos. Hoje eles sabem desde cedo que vão prestar esse exame e querem ir bem. Nós entendemos que isso é positivo, porque, mais do que tirar uma boa nota, eles estão aprendendo conteúdos que vão ajudá-los no futuro. Estamos colocando os tijolinhos para que eles possam ir bem mais adiante – explica Flávia.
Para envolver a comunidade escolar no projeto ambicioso, as gêmeas apostaram em um dos pontos fortes da comunidade: a capacidade de mobilização em torno de causas comuns. Convidaram cada vez mais os pais a frequentaram a escola, participar e organizar eventos em que as crianças e adolescentes são protagonistas, como apresentações artísticas. Receberam de volta apoio aos professores e uma confiança incondicional no projeto pedagógico da escola.
Novos horizontes para alunos e professores
O objetivo de levar os alunos mais além, pouco a pouco, vai sendo alcançado. No ano passado, a instituição teve apenas uma reprovação. Quatro estudantes do 9º ano passaram em concursos disputados para cursar o Ensino Médio. Dois foram aprovados para o Instituto Federal e outras duas conseguiram vaga na cobiçada Escola Sesc de Ensino Médio (Esem), no Rio de Janeiro. Neste ano, segundo professores, já há mais interessados em prestar exames para instituições disputadas.
Um projeto pedagógico bem-sucedido, no entanto, não se consolida do dia para a noite. A boa relação entre direção e corpo docente e a baixa rotatividade de funcionários e alunos são alguns dos principais trunfos da Santa Cruz para continuar avançando. A maioria dos 34 professores está lá há mais de uma década, incluindo as gêmeas, que atuam na escola há mais de 20 anos. Vários deles foram alunos da casa. Novas contratações ocorrem, mas quase exclusivamente em caso de aposentadoria dos mais antigos.
Leia também:
O sonho e os desafios de quem quer lecionar na Educação Básica
Desempenho em matemática e leitura cresce em todos os níveis do Ensino Fundamental no Brasil
O salário dos docentes acompanha o piso nacional: são cerca de R$ 2,1 mil iniciais para 20 horas semanais. Mas o bom ambiente de trabalho e a possibilidade de integrar o que a comunidade escolar chama de Família Santa Cruz torna o local atraente para muitos profissionais de todo o município.
– Tinha trabalhado aqui anos atrás substituindo uma professora, e sempre quis voltar. Queria trazer minhas filhas para cá. Quando surgiu a oportunidade, eu vim – conta Cláudia De Gasperi, que assumiu o 4º ano em 2016.
Situação parecida viveu Paula Sounza, que dá aula na Santa Cruz há 12 anos. A professora de matemática do 7º e 9º anos, que mora no centro de Farroupilha e leciona na rede estadual à tarde, deixou de matricular a filha Eduarda em uma escola em frente a sua casa para levá-la à instituição de Nova Milano.
– Achei que seria um ambiente bom para ela. Os alunos aqui são são felizes, e existe uma boa rede de apoio, o que torna possível propor coisas e atingir metas. As famílias dão resposta, e tudo isso faz com que eles consigam atingir o mesmo patamar de uma escola particular, ou até mais alto – avalia.
Busca de recursos em editais
Diante de uma pipeta de água e óleo com uma pastilha efervescente recém inserida na mistura, a professora pergunta:
– Como é que as moléculas estão agora? Calminhas ou doidonas?
– Doidonas! – respondem, em coro, cerca de 15 crianças.
O processo é repetido em outras pipetas, que os alunos do segundo ano, divididos em trios, observam fascinados antes de responderem com disposição a uma série de questionamentos. Ninguém parecia entediado na aula que abordava uma propriedade química de nome cabeludo: ebulioscopia.
– Essa aula é a preferida dos pequenos – observa a diretora Flávia Zangalli.
Se não é difícil entender o fascínio das crianças pela parte "mágica" da ciência, isso fica ainda mais fácil dentro do laboratório de ciências da Santa Cruz. Microscópios novos em folha, uma smartv de tamanho generoso – que pode reproduzir as imagens microscópicas – e um pequeno planetário são apenas alguns dos itens disponíveis para serem utilizados nas aulas.
Muito do que faz com que a Santa Cruz lembre uma escola privada em termos de estrutura partiu de ações da comunidade escolar, e não do poder público. E atingir esse patamar foi possível graças a uma estratégia em que a direção da escola tem apostado para buscar melhorias consideráveis sem precisar recorrer à prefeitura. Flávia costuma inscrever projetos da escola em editais da iniciativa privada ou de órgãos públicos sempre que possível.
A iniciativa adotada de uns anos para cá não para de render frutos. Computadores do laboratório de informática, livros da biblioteca, praça de brinquedos e a iluminação que está sendo instalada no ginásio de esportes foram conquistas que chegaram pelos editais. O laboratório de ciências, patrocinado pela Eletrosul, veio depois de duas tentativas.
– Todo mundo fica ligado nisso e nos avisa quando tem alguma coisa disponível. Eu inscrevo em tudo. Quando não dá, arrumamos o projeto e tentamos outra vez – conta.
Intervenções da prefeitura existem, mas são mínimas se comparadas a escolas problemáticas – onde as demandas são mais urgentes. Além do básico, como o pagamento dos funcionários, a merenda e o transporte para os alunos, o município colabora com a manutenção do prédio, muitas vezes em parceria com os pais.
– Tem vezes que nós compramos as tintas e eles pagam a mão de obra. Em outras, eles dão os materiais e nos arrumamos – diz o o presidente do CPM.
Modelo difícil de reproduzir, mensagem fácil de entender
Foi de estranhamento a reação de Ana Luiza Spinelli, professora do 5º ano, ao ser questionada sobre o segredo para o bom desempenho dos alunos na Prova Brasil:
– Não vejo diferença no que fazemos aqui dos outros lugares. A gente é bem tradicional: os alunos copiam do quadro, acompanhamos o caderno para ver se o conteúdo está em dia – disse a docente, responsável por uma das turmas que prestaram o exame em 2015.
Ana Luiza não é a única a ficar intrigada com a curiosidade externa sobre a escola: seus colegas, direção e funcionários também acreditam que não há nada de especial por lá. Especialistas em educação, por outro lado, entendem que a receita de sucesso da Santa Cruz reside em fatores muito específicos, e dificilmente o que é feito na escola da serra gaúcha poderia ser reproduzido em outros contextos.
A combinação entre uma boa gestão, comunidade participativa, pais comprometidos e professores engajados é conjugada uma certa homogeneidade socioeconômica, algo distante da realidade das metrópoles. Embora mais de 50% das famílias tenham renda mensal de até R$ 2,1 mil, cerca de 80% delas possuem casa própria e têm computadores, mesmo percentual de alunos cujos pais vivem juntos. Sete em cada 10 alunos têm acesso à internet em casa.
– As avaliações internacionais mostram que a maior parte do desempenho escolar tem questões extraescolares envolvidas. Não é só uma questão didática, pedagógica ou curricular. O que as escolas que se saem bem têm em comum é que elas não têm miséria. Ninguém passa fome, ninguém está sem casa ou tem dificuldades de sobrevivência. Isso já é meio caminho andado para que um projeto pedagógico dê certo – observa Juca Gil, professor da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS.
Leia mais:
MEC divulga dados preliminares do Censo Escolar 2016
O que os dados do MEC mostram sobre a educação no RS
Para a professora do programa de pós-graduação em Educação da Unisinos, Rosangela Fritsch, as chamadas variáveis subjetivas, que não são captadas pelo indicador, de fato, podem fazer a diferença no desempenho escolar. Ela destaca que comunidades que valorizam e reconhecem o papel da escola e dos professores costumam favorecer a aprendizagem.
– O Ideb é um indicador que não necessariamente vai medir a qualidade de uma escola, mas pode ser um elemento importante, principalmente em comunidades mais isoladas, para ajudar a melhorar a autoestima de alunos e professores, e a criar expectativas. Eles passam a acreditar mais em si – diz a professora.
Se não é possível falar em receita, no entanto, a diretora Flávia acredita que há uma dica que pode ajudar escolas de diferentes contextos sociais:
– O mais importante é olhar para si, conhecer a sua realidade e as particularidades do lugar onde a escola está inserida. E trabalhar com planejamento. Nós só olhamos para nós mesmos.
Rede municipal estruturada
Que a Escola Santa Cruz é destaque em números, não se discute. A rede que integra, no entanto, também não fica para trás no índice do MEC.
A nota da rede municipal de Farroupilha, que conta com 27 escolas, está entre as 15 mais altas do Estado nos anos iniciais, com 6,9. Entre as melhores, é o único município com mais 60 mil habitantes. Além da Santa Cruz, outras oito escolas tiveram notas iguais ou maiores a 7 nessa faixa de ensino.
– Temos trabalhado muito na questão da formação dos professores, promovendo encontro mensais com aulas sobre diversos assuntos – conta a secretária de Educação de Farroupilha, Elaine Giuliato.
As reuniões promovidas pela pasta para os cerca de 700 docentes da rede municipal abordam, principalmente, questões ligadas ao uso da tecnologia em sala de aula e à base nacional curricular. Além de aprimorar a formação, elas contam para que os professores possam mudar de nível e ganhar aumentos de salário ao longo dos anos.
A direção da Santa Cruz diz apreciar a iniciativa, mas nem sempre o que é exposto aos profissionais é aderido pela escola – a qualidade do acesso à internet, por exemplo, ainda precária em Nova Milano.
– Nós achamos (a iniciativa) louvável, mas cada escola tem suas peculiaridades. E os conteúdos lá são abordados de forma mais generalista – avalia Flávia Zangalli.
Em Farroupilha, mais de 60% dos alunos matriculados no Ensino Fundamental estudam na rede municipal. A titular da Educação considera o desempenho da rede satisfatório, mas admite que a instituição de Nova Milano tem especificidades determinantes para sair na frente.
– A comunidade abraça essa escola, coopera com ela e aproveita o que ela faz de melhor, que é trabalhar a educação formal. Tudo é favorável para que tenham uma nota melhor. Em termos de rede, considero positivo, porque quando se tem uma escola que vai melhor, ela incentiva as outras a buscarem isso.