Uma nova tendência tem aparecido na rede social TikTok: a de crianças e adolescentes que não almejam no futuro um emprego conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em vídeos, representantes das novas gerações desprezam carteira assinada e dizem que preferem "passar vergonha na internet" a trabalhar formalmente.
Frente ao fenômeno, influenciadores mais crescidos decidiram ir a público para analisar esse comportamento — convocando, inclusive, seus filhos para explicar o porquê da implicância.
Uma delas foi Fabiana Sobrinho, que apareceu ao lado da filha. A menina Valentina destacou que não quer ser CLT para não ter que "andar de ônibus todo o dia", além de afirmar que rejeita a ideia de estar em um ambiente com muita gente e chefe "mandando".
O assunto extrapolou o TikTok e repercutiu também em outras redes sociais, como X (ex-Twitter) e YouTube, além do fórum de debates Reddit.
Mas de onde vem, afinal, essa rejeição à CLT? Segundo a psicóloga e consultora de carreiras Luciane Linden, as gerações mais novas almejam mais equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Ou seja, não querem que as obrigações profissionais sejam o ponto central de seu dia a dia. E, na visão dessas gerações, a CLT simboliza isso.
— Eles não querem que o trabalho seja tudo. Estamos vivendo neste mundo pós-pandemia que mudou muito a perspectiva, com pensamento em termos de trabalho remoto e até mesmo de ter uma carga horária menor, que não seja de 44 horas semanais. Essa nova geração tem um aspecto interessante, que é esse equilíbrio, com espaço para cuidar da saúde física e mental — detalha Luciane.
Alerta para desinformação
O ponto de vista dessas crianças e jovens, no entanto, pode estar partindo de conceitos equivocados sobre a CLT ou mesmo desinformação, alertam as especialistas ouvidas para a reportagem. Afinal, nem todas as carreiras de carteira assinada se resumem a trabalhar muitas horas por dia e ganhar pouco.
Então, seria preciso uma maior orientação a estes jovens, inclusive por parte dos pais, para que não repliquem narrativas sem um conhecimento mais amplo do mercado de trabalho.
— Estes jovens já sabem que podem mais e que, se aquele lugar em que estão não está entregando o que precisam para se desenvolver, eles vão buscar outra oportunidade. Mas ficar pulando de empresa em empresa também não é algo que querem. E isso já leva a ver com outros olhos uma carreira autônoma, seja empreendendo ou como influenciador. Então, esse pré-conceito com a CLT vem, muitas vezes, por não entender esse lugar do mercado de trabalho, que, sim, também dá pra crescer nele — analisa a psicóloga e consultora do PUCRS Carreiras Thaline Moreira.
Ela acrescenta que, apesar de a CLT ter horários a serem cumpridos — o que pode se tornar cansativo —, tem vantagens que estes jovens parecem estar desconsiderando, como uma estabilidade maior. Thaline lembra, por exemplo, que em um emprego com carteira assinada o salário é sempre pago em uma data específica, contrastando com as eventuais incertezas da renda de quem trabalha de forma autônoma.
— Hoje em dia, as empresas também oferecem diversos benefícios. A maioria tem plano de saúde, plano dentário etc. Empresas maiores oferecem auxílio-creche para quem é pai ou mãe, auxílio para fazer academia, e algumas têm até mesmo cartões de incentivo à cultura. Além disso, na CLT você pode desenhar melhor uma construção de carreira, pois sabe o percurso — detalha Thaline.
Luciane Linden avalia que por trás do movimento na internet pode haver um pouco de imaturidade. Ela alerta que a decisão de não querer trabalhar formalmente pode prejudicar na hora da aposentadoria — por falta, muitas vezes, de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em meio ao imediatismo de quem consome conteúdos cada vez mais rápidos, as novas gerações muitas vezes deixam de fazer um planejamento de longo prazo.
— Muitos jovens não têm tanto essa preocupação financeira porque ainda moram com os pais — avalia Luciane. — Eles vêm adiando a saída da casa da família, diferentemente de tempos atrás. Atualmente, a pessoa fica até os 30 ou 35 anos morando com os pais, sem aquelas despesas de aluguel, luz, água, internet. Com isso, ela também não tem tantos compromissos financeiros, o que faz com que consiga ir mais pelo que deseja do que pela necessidade.
O sonho de ser influenciador
Nos vídeos em que desdenham da CLT, muitos jovem almejam a profissão de influenciador digital. Em uma das publicações, a criadora de conteúdo inclusive orienta o interessado a ingressar neste mercado a "filmar tudo" do seu dia a dia e disponibilizar na internet, argumentando que algum vídeo vai viralizar — a partir disso, haveria a monetização. Assim, não seria necessário trabalhar com carteira assinada.
A psicóloga e especialista em uso de telas Sofia Sebben ressalta que a profissão de youtuber e influenciador digital é, sim, importante e válida. Porém, tem diversos desafios e não é tão fácil quanto aparenta. Ela alerta para os riscos de expor a vida inteira online, com o surgimento de haters e prejuízos à saúde mental.
— Por estarem imersos em um ambiente tecnológico, adolescentes e crianças estão tendo acesso a influências que dizem que trabalhar na rede social é lucrativo. É um fenômeno que vem muito dos influenciadores que, com parcerias, têm conseguido ter a sua renda advinda dese tipo de trabalho — explica Sofia.
Porém, mesmo com a sedução que esse tipo de profissão pode exercer nos jovens, o mercado digital provavelmente não conseguiria absorver uma geração inteira que deseja viver desse tipo de trabalho, observa a especialista. Além disso, deixaria as outras profissões desassistidas.
Sofia reconhece que o mercado conseguiu transformar vários influenciadores em fenômenos e que muitas pessoas estão ganhando bastante dinheiro, mas alerta:
— Não é para todo mundo. Entendo que a gente ainda vai precisar de quem trabalhe em regime CLT, com pessoas nas empresas, mesmo que a gente vá ter cada vez mais pessoas querendo trabalhar online. É uma questão de necessidade. Teremos que ter pessoas em todas as pontas do trabalho para que a roda gire. A grande questão é orientar o adolescente para que tome uma decisão que esteja alinhada com o que ele quer para sua vida, mas também entendendo que ser influenciador digital nem sempre é a solução.
Em comum, as especialistas ouvidas para a reportagem apontam a necessidade de ajustes e flexibilização nas empresas para que consigam atrair estes jovens. Jornada de trabalho reduzida, possibilidade de home office e uma rigidez menor ajudam a quebrar as barreiras entre o mercado de trabalho e as novas gerações.