
Um pai — sem nome, apenas Pai — controla por completo a esposa e os quatro filhos. Os membros desse núcleo são repreendidos e corrigidos a todo instante, em hábitos e tarefas dos mais corriqueiros.
A influência que a figura tirana exerce sobre os demais personagens é o tema de A Família, livro da escritora espanhola Sara Mesa que acaba de ser lançado no Brasil (Autêntica Contemporânea, 224 páginas, R$ 74,90 o impresso e R$ 52,90 o e-book). É uma família “estranha”, como percebe quem os observa do lado de fora da casa sem televisão.
A influência da figura paterna, ao lado da mãe submissa, será intensamente sentida desde a infância até a vida adulta dos filhos, fase esta que é o grande foco de interesse da autora madrilenha de 48 anos. Estruturado em capítulos breves, o romance vai e volta no tempo, contemplando diferentes personagens e épocas.
Sara conversou com Donna por e-mail, em entrevista que pode ser conferida a seguir.
Você apresenta uma família com um pai controlador, regrado, que imobiliza a mulher e os filhos. Por que escolheu essa configuração familiar?
Não tenho certeza se é uma escolha. Quase tudo o que escrevo é baseado em experiências reais que aconteceram comigo ou muito próximas de mim. É claro que existem mulheres controladoras que tiranizam a família e também crianças que tomam as rédeas do poder, mas a estrutura de abuso mais frequente é esta, a do autoritarismo paterno.
Você acredita que a violência psicológica disfarçada de cuidado e proteção é comum nas famílias?
Não sei quão comum é, mas acontece e é difícil de detectar. O que me interessou narrar neste romance é como as experiências da infância marcam a idade adulta. As crianças aqui vivem com medo, em maior ou menor grau, sem sofrer violência física. A manipulação psicológica, se também for feita apelando a valores morais, é difícil de combater.
A mãe é uma mulher subjugada, com os cotovelos mergulhados na pia da cozinha, lavando louça, de acordo com uma cena da narrativa. As tarefas domésticas ainda escravizam muito as mulheres de hoje, na sua opinião?
A novela se passa especialmente nas décadas de 1980 e 90, época em que os filhos (do casal) são crianças e adolescentes, por isso era muito comum que as mulheres cuidassem exclusivamente da esfera doméstica. Agora isso mudou — embora a igualdade ainda não tenha sido alcançada —, mas o que eu queria mostrar não é o quão cansativo é lavar a louça dia após dia, mas sim a falta de liberdade, de horizontes, de estar imerso em algo o dia todo.
É possível perceber os problemas e as dificuldades dos filhos do casal de A Família quando chegam à vida adulta. Quão presos ficamos, para sempre, à infância e à adolescência?
Em grande medida, e isso é algo que a psicologia tem dito quase desde o seu início. Na infância, nossos padrões mentais de comportamento são formados, até mesmo no nível físico e cerebral. Se, por exemplo, os filhos aprenderem que para receber carinho têm de fingir interesses comuns aos pais, farão isso, e quando forem adultos poderão ter dificuldade em expressar o que realmente desejam. O confinamento em que vivem as crianças do meu romance sem dúvida as influencia, causa-lhes consequências.
Ainda que sejam épocas diferentes, sua escolha de retratar uma família sem televisão em casa nesses nossos tempos de hiperconexão com telas é bastante simbólica. Pode comentar?
Naquela época, a televisão era uma janela para o mundo, para a modernização de um país que acabava de sair de uma ditadura. Esses novos costumes sociais, mais abertos, menos puritanos, aterrorizam o pai do romance, por isso ele não permite a televisão em casa. É muito diferente do que acontece hoje, já não se pode dizer que a tecnologia mostra o mundo, mas que desfoca, confunde, satura. Mas imaginemos pais que proíbam seus filhos adolescentes de usar a internet. Seria também uma forma de excluí-los do mundo, de cortar um possível desenvolvimento pessoal e social.

A Família, lançamento de Sara Mesa
Autêntica Contemporânea, 224 páginas, R$ 74,90 o impresso e R$ 52,90 o e-book