Nenhum grande Carnaval do Brasil, a não ser o de Porto Alegre, tem uma mulher abrindo o desfile sozinha, logo após a comissão de frente, ziguezagueando e rodopiando pela avenida enquanto segura um mastro de metal e um estandarte estampado com o brasão da escola de samba. É na folia do sul do país que as porta-estandartes representam uma antiga tradição que resiste como símbolo de graça e força feminina.
Sempre à frente no desfile e levando na mão direita uma bandeira vertical com ponta triangular, a porta-estandarte tem a função de apresentar a escola de samba para o público. Sua presença surge na virada do século 19 para o 20, quando os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro faziam uma procissão pelas ruas trazendo atrações como esta figura feminina e o baliza, homem com o papel de proteger o adereço que ela carrega, representado nos sambódromos pelo mestre-sala.
Mas a figura do estandarte abrindo alas e chegando antes de todos é algo muito mais primitivo na história da humanidade. Foi visto nas guerras, quando um homem vinha à frente das tropas para anunciar o conflito que se aproximava.
Nas escolas de samba de Porto Alegre, a porta-estandarte persistiu apesar do surgimento da dupla de mestre-sala e porta-bandeira. Embora as duas figuras femininas bailem de forma semelhante e tenham a responsabilidade de sustentar o mastro com o brasão, também chamado de pavilhão, item mais importante de uma agremiação, há diferenças fundamentais.
Além de segurar uma bandeira horizontal, a porta-bandeira sempre aparece ao lado do par. Já a estandarte, com sua flâmula vertical, não precisa de ninguém para chegar na avenida. E em vez de vir lá no fundo, surge na dianteira, atrás apenas da comissão de frente.
— A figura da porta-estandarte no Rio Grande do Sul é resistência de um movimento social, cultural e feminista. Porque a história do estandarte em si não tem a ver com a figura da mulher, mas aqui no Estado se delineou dessa forma. Tanto que 100% das estandartes nas escolas de samba de Porto Alegre são mulheres. É uma característica nossa — reforça Kizzy Pereira, ex-porta-bandeira da Estado Maior da Restinga.
Caçula de Onira Pereira, a lendária porta-estandarte da Bambas da Orgia que ditou tendência e fixou a posição de liderança da mulher com o estandarte abrindo o desfile no Carnaval porto-alegrense, por três vezes Kizzy foi convidada para participar do Carnaval do Rio de Janeiro justamente como forma de homenagear a abre-alas feminina que não existe na Marquês de Sapucaí. Entre 2010 e 2012, ela ergueu o pavilhão da Imperatriz Leopoldinense e o guarda em casa até hoje.
Eu mudei a história do estandarte!
ONIRA PEREIRA
O pedido para mostrar como a porta-estandarte se movimenta na avenida partiu de Max Lopes, carnavalesco carioca que tinha paixão pela figura feminina típica do Carnaval de Porto Alegre. Antes de Kizzy, ele havia chamado sua mãe logo após ela se aposentar do posto na Bambas da Orgia. Onira desfilou na Sapucaí em três situações: pela Vila Isabel, em 1996, pela Estácio de Sá, em 1997, e pela Grande Rio, em 1998.
— É tão forte a atuação da minha mãe como porta-estandarte em Porto Alegre que o Max Lopes, quando veio para cá para estudar a história do Rio Grande do Sul e homenagear nosso Estado pela Vila Isabel, levou ela para assumir o posto por lá — conta Kizzy.
Onira empenhou-se tanto para consolidar a imagem da porta-estandarte que a majestosa guardiã do pavilhão de uma escola de samba entrou até para a história da folia carioca. Na letra do enredo A Heroica Cavalgada de Um Povo, composto por Tião Grande e Cafu Ouro Preto, apresentado pela Vila Isabel em 1996, o primeiro verso é dedicado para a mulher que brilha no Carnaval gaúcho:
Baila minha porta-estandarte
E com a Vila vem mostrar toda emoção
A heroica cavalgada de um povo
Sua história, seus costumes, tradições
Sepé Tiaraju protege a terra
Na luta contra a força da invasão
Fez da bravura sua arma
Defendendo os sete povos das missões
Onira estava em todas. Até quando a Rádio Gaúcha montou um bloco de Carnaval para celebrar o aniversário de 70 anos, em 1997, foi ela quem saiu na frente de todos os foliões empunhando um estandarte bordado com o logotipo da emissora. Ao aposentar-se da Bambas, em 1984, entregou o mastro para outro grande nome do Carnaval gaúcho, a amiga Rosalina Conceição.
Depois de Onira e antes de Kizzy, foi Rose quem levou para a Sapucaí o bailado solitário e potente da mulher com o brasão da escola de samba. Também a convite de Max Lopes, desfilou pela Grande Rio em 1999 e 2000, época em que assumiu a presidência da Bambas da Orgia. Faleceu em junho de 2023, aos 65 anos. Deixou como legado o fato de ter sido a primeira mulher a presidir uma grande agremiação carnavalesca na Capital.
Ela vem na frente
Onira Pereira sempre lutou para que a porta-estandarte ficasse na dianteira do desfile, aparecendo antes do mestre-sala e da porta-bandeira. Se tivesse que ficar mais para trás, que fosse, no máximo, logo após a comissão de frente, posição que acabou se consolidando em todas as escolas de samba.
Mas quando assumiu o posto na Bambas da Orgia, em 1973, não raro alguns homens também levavam o estandarte ou, às vezes, a posição era empurrada para o fundo. Conforme foi se ajustando na posição, Onira também foi inventando moda. Literalmente. Naquela época, as porta-estandartes desfilavam de maiô ou biquíni. Em sua estreia, ela própria zanzou no Carnaval exibindo o corpo em minissaia e blusa acima do umbigo. Quis vestir roupa mais elegante, tal qual a porta-bandeira, trajada até os pés.
Com ajuda do famoso figurinista e carnavalesco Rony Rocco, elaborou um vestido com saia de filó, tecido parecido com a tule, que serve de armação. Por baixo, usou uma bermuda colada. Assim, ao rodopiar na avenida e permitir que a saia girasse livremente, nada ficaria visível.
— A atração é o pavilhão, e não o corpo da porta-estandarte — diz, em tom professoral, sublinhando uma regra que ela própria inventou.
Certa vez, uma escola de samba tirou a porta-estandarte do lugar de destaque, colocando-a mais ao fundo no desfile. Houve protesto e gritaria, e a ousadia não voltou a se repetir. O atrevimento, segundo a historiadora e pesquisadora de Carnaval Helena Cattani, foi resultado de influências do Rio de Janeiro.
— Na primeira década dos anos 2000, quando o Carnaval de Porto Alegre teve jurados vindos do Rio, levantou-se a possibilidade de tirar a porta-estandarte dali da frente. Porque os jurados vinham de um Carnaval que não tinha essa figura. Houve resistência e disseram que iriam manter a figura na frente do desfile — relata.
Ciente de que na Sapucaí poderia não desfrutar da posição de prestígio, Onira, ao receber o convite de Max Lopes para erguer o mastro da Vila Isabel, fechou negócio dando suas cartas.
— Lá no Rio não tem porta-estandarte, então eu disse para eles: “Eu entro na frente, porque porta-estandarte entra na frente”. E eles me responderam: “Será como tu quiseres”.
Aos 73 anos e diagnosticada com Alzheimer, a baluarte repete-se com frequência, esquecendo do que havia dito há alguns segundos. Mas tem respostas na ponta da língua sobre o passado de porta-estandarte, sejam nomes, situações, feitos e desfeitos dos seus nove anos como símbolo feminino da Bambas da Orgia, entre 1973 e 1984. A cada memória revivida, chega à seguinte conclusão:
— Eu mudei a história do estandarte.
Ninguém discordaria. Quando começou a pesquisar o Carnaval de Porto Alegre, Helena Cattani quis analisar a forma como Onira Pereira, já aposentada, acompanhava os desfiles de Carnaval. Enxergou uma mulher exigente e solícita, preocupada que a posição de porta-estandarte fosse mantida pelas novas gerações com elegância e respeito pela imagem que ela construiu.
É uma tradição nossa o estandarte sempre à frente da escola
GUISLAINE PEREIRA
— Se ela via uma menina de outra escola com o vestido amassado, ou segurando o estandarte errado, ela parava e ensinava. Nunca viu as outras como competidoras. Jamais se recusou a ensinar ninguém. Ela foi a maior não porque dançava bem ou inventou a saia, mas porque tinha carinho pela figura da porta-estandarte — destaca a historiadora.
O diferencial
Referência na arte do bailado carnavalesco e fundador da primeira Escola de Mestre-Sala, Porta-Bandeira e Porta-Estandarte do Rio de Janeiro, mestre Manoel dos Anjos Dionísio tem uma opinião sobre a porta-estandarte que pode soar polêmica. Quando esteve na Capital entre 2001 e 2009 para integrar a equipe de Manifestações Populares da Secretaria Municipal de Cultura, ficou com a sensação de que, nas escolas de samba daqui, a emancipada figura feminina era mais importante do que a dupla de mestre-sala e porta-bandeira.
— Em Porto Alegre, a porta-estandarte tem muito mais valor. Foi uma concepção minha. Se a porta-estandarte vier bem, toda a escola vem bem. Mas, se a porta-estandarte não desfilar bem, toda a escola também não fica bem — detalha o baluarte de 87 anos.
Mesmo que a constatação possa gerar algum desconforto, Helena Cattani concorda:
— A porta-estandarte é nossa. Tem aquela coisa bairrista do gaúcho, então a gente vai dar importância. É o que nos diferencia dos outros carnavais. Quando se fala em Onira, Rosalina, Vera Furacão e Guislaine Pereira, falamos de mulheres fortes, muito imponentes, que vão ocupar esses cargos e vão ser a cara de suas escolas de samba.
Filha mais velha de Onira, Guislaine Pereira assumiu o estandarte da Estado Maior da Restinga entre 1996 e 2006. Com a herança do nome, não tinha como passar batido: de 11 carnavais desfilados em Porto Alegre, levou o estandarte de ouro por oito vezes, tornando-se a grande porta-estandarte de sua época.
— Quando tu vem na frente da escola, tem que dar um recado para o público: “Boa noite, público. Estou com meu estandarte em punho e minha escola está pronta para a guerra” —ressalta.
Aos 49 anos e já afastada do posto, teme que a função talhada com tanta afeição pela mãe fique descaracterizada e se perca com o tempo. Já deixou de ser um dos quesitos de avaliação pelos jurados.
— Muitas escolas vêm colocando o casal de mestre-sala e porta-bandeira na frente, sendo que a porta-estandarte é mais antiga. É uma tradição nossa o estandarte sempre à frente da escola — frisa.
Nova geração
Teriam sido as influências cariocas que tiraram a porta-estandarte do grupo de quesito completado por mestre-sala e porta-bandeira, na transição dos anos 1980 para 1990. Hoje, o desempenho da solitária guardiã do pavilhão não é avaliado por jurados, embora seja componente obrigatório de uma escola de samba porto-alegrense. Sua ausência pode levar a perda de pontos administrativos.
Ainda que já não seja um dos oito quesitos considerados, a porta-estandarte segue onipresente. Segundo Kelly Ramos, presidente da União das Entidades Carnavalescas de Todos os Grupos e Abrangentes de Porto Alegre, as 19 agremiações que participam do desfile no Porto Seco, entre entidades da Capital e da Região Metropolitana, incluindo a única tribo, os Comanches, mantêm o posto. Há casos em que há mais de uma, sendo que a primeira porta-estandarte é a posição que a segunda e a terceira desejam alcançar.
Muitas vezes, o posto é mantido na mesma família, como no caso de Onira e suas filhas. Vera Furacão, que também foi passista e porta-bandeira de diferentes escolas de samba, legou à neta Dandara Vais o gosto pela função.
— Comecei com aulas de porta-bandeira, mas gostei mais de ser porta-estandarte. Pegar o pavilhão sozinha me deu um sentimento de imponência. Eu quis essa tarefa – afirma a jovem de 20 anos, que assumiu o posto de primeira porta-estandarte da Estado Maior da Restinga em 2023, quando a escola foi campeã.
Dandara honra os ensinamentos das antecessoras, mas entende que algumas regras podem ser revistas. Como o uso da saia de filó sempre que estiver com o pavilhão:
— Eu tenho uma lei: na quadra de ensaio, não priorizo a saia de filó. Uso uma roupa normal. Mas nas apresentações da escola, sempre uso filó. Nos representa. Nos diferencia da porta-bandeira.
Segunda porta-estandarte da Copacabana, Camila Rodrigues, 43 anos, é uma das poucas mulheres transgênero da história do Carnaval de Porto Alegre. Na década de 1980, a travesti Dandara Rangel levantou o estandarte da Estação Primeira da Figueira.
— Minha família toda era (da) Embaixadores do Ritmo. Lá em casa, era fantasia para lá e para cá. Eu brincava na passarela com uma vassoura na mão, girando. Hoje sou a primeira mulher trans com nome social na documentação a assumir a função de porta-estandarte. A Copacabana me deu essa oportunidade.
Sinal de que a aguerrida bailarina solitária segue viva na avenida e em transformação.