Certamente, a composição mais comovente já feita por Mozart não é Brilha Brilha Estrelinha, mas a canção foi suficiente para fazer Letícia Jariy da Rosa cair no choro durante a sua primeira aula de violino, em fevereiro deste ano. Copiando o posicionamento dos dedos e os movimentos com o arco feitos pela professora, a gerente de produtos conseguiu fazer soar suas primeiras notas no instrumento de cordas e, quando terminou, não conseguiu segurar o pranto. Isso porque tocar violino representa não só a realização de um sonho, como também serve de atestado: “aqui, venci na vida”.
O amor pelo instrumento despertou quando era criança, ouvindo concertos na TV e na fita cassete, acompanhada do pai, e vendo violinistas tocando na igreja. Como a família era humilde, não havia como a menina fazer aulas. A situação financeira ficou ainda mais difícil quando o pai faleceu e Letícia, já adolescente, precisou morar com outras pessoas.
Um emprego de secretária aos 18 anos chegou a parecer a solução para que pudesse, enfim, viver a experiência. A decepção, no entanto, foi grande quando descobriu que o hobbie ainda era caro demais:
— Lembro de pensar: “Nossa, agora tenho dinheiro, talvez finalmente possa aprender”. Até que liguei para uma escola e vi que só a aula custava metade do salário mínimo que eu ganhava na época. Não tinha condição — conta.
A vida começou a mudar para melhor quando uma boa pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) lhe garantiu uma bolsa integral na PUCRS.
Formou-se em Sistemas da Informação e entrou para o frutífero mercado da tecnologia. Letícia também se casou e relata que seu marido é seu grande parceiro na construção de uma vida mais feliz e próspera. Foi ele, inclusive, quem a incentivou a fazer a matrícula na escola Guitarríssima, em Porto Alegre, este ano.
— Fiquei tão emocionada na minha primeira aula, pois nunca pensei que conseguiria realizar um sonho assim. Na minha infância, tínhamos uma vida muito humilde, dependendo literalmente da ajuda de outras pessoas para comer. Nunca imaginei que iria parar de passar necessidade, ter uma vida confortável. Hoje, levo minha mãe para fazer as unhas, almoçar fora e posso fazer coisas por mim também, mesmo coisas que pareciam pertencer a um mundo distante do meu — afirma Letícia, emocionada.
Quem já tentou sabe: começar a aprender sobre um instrumento na fase adulta é muito mais difícil do que na infância e na adolescência. Letícia se queixa de ter menos flexibilidade e coordenação motora nas mãos do que os alunos mais jovens, sem contar que, do posicionamento do braço que segura o arco até a leitura das partituras, tudo é novidade para ela, exigindo esforço físico e mental.
Além disso, na cabeça de um adulto, há preocupações com questões do trabalho, da casa e da família disputando espaço com os compassos e as claves de sol. Para tentar compensar essas dificuldades, Letícia relata que é preciso estudar em casa e ter uma dose saudável de “cara de pau”.
Em menos de um ano praticando, já se desafiou a participar de duas apresentações da escola e fez bonito no palco com músicas de compositores como Ed Sheeran e Roy Orbison.
— Não é fácil, sai totalmente da minha zona de conforto. Meu cérebro frita nas aulas, mas fico muito orgulhosa de mim. Sei que um ano é pouco e que o aprendizado até aqui foi como navalhadas numa floresta tropical. Tenho anos de estudo pela frente, mas sabe por que continuo a fazer aulas? Porque meu sonho master é conseguir tocar As Quatro Estações de Vivaldi inteirinha. Todos os 40 minutos de música — diverte-se a musicista, e conclui: — Esse instrumento me impulsiona para o desconhecido. Se estou estudando violino, acho que posso fazer qualquer coisa na vida — pondera ela.