
Por Luciano Alabarse
Diretor teatral, encenou “Lilás”, baseado na obra de Jon Fosse, em 2019, em Porto Alegre
O português de Portugal não é a mesma língua que o português brasileiro. Mera constatação tautológica. Não estou discriminando diferenças linguísticas entre os dois países, atacando portugueses, nada disso. Estou apenas reconhecendo minha dificuldade em ler livros publicados em Portugal. Por isso mesmo, fiquei espantado quando ganhei de um amigo um volume com quatro peças de Jon Fosse, dramaturgo que me interessava pela ressonância elogiosa de sua obra teatral, mas que conhecia pouco. A construção frasal portuguesa não me afastou da leitura, não me fez largar o livro, não me travou. A dramaturgia de Fosse me assombrou de tal maneira que me atirei em direção à sua literatura. Sem rede, sem restrições. Foi uma experiência avassaladora.
Jon Fosse, poucos dias atrás, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2023. O norueguês, nascido em 1959, já escreveu, além de incontáveis romances, mais de 40 textos diretamente para o teatro, Em seu país de origem, é chamado de “o novo Ibsen”. A comparação deve parar por aí, pois os dois autores são muito diferentes em forma e conteúdo. A influência mais evidente de Fosse é Thomas Bernhard, autor que igualmente me fascina. Quando montei a Trilogia Bernhard, peguei um avião e fui conhecer Viena, agora sonho em conhecer Oslo.
O austríaco e o norueguês têm convergências visíveis. A circularidade exasperante dos textos é o principal ponto de ligação entre eles. Parágrafos longuíssimos, repetitivos e obsessivos, fazem de ambos um desafio ao sistema nervoso do leitor. Ambos apontam as mazelas de um mundo em decomposição, ruínas de uma sociedade destruída, personagens obsessivos e doentes a denunciar paradoxos da distopia ocidental. Em ambos, não há recursos fáceis ou soluções linguísticas previsíveis.
A escrita de Fosse flagra personagens decadentes, mas afiados, dispostos a viver perigosamente suas vidas miseráveis. Sua dramaturgia é seca, desesperançada, hipnótica. Eu mesmo senti a força de suas peças quando montei Lilás, no porão do Teatro Renascença, em Porto Alegre, anos atrás. Músicos de estética punk, os personagens tentam ensaiar em um porão abandonado, sem sucesso. Suas relações problemáticas se agigantam à medida que a peça avança. A agressividade descamba para a luta corporal. Teatro físico, teatro cru. O local escolhido para a montagem era perfeito, e o elenco se atirou entusiasmadamente ao projeto. Era um espetáculo duramente realista, com o pequeno público, compatível ao tamanho do porão, quase misturado à área de ação.
De Lilás em diante, leio avidamente Jon Fosse. Seus poucos romances lançados no Brasil são extraordinários. Melancolia, que não tem nada a ver com o filme de Lars von Trier, é tocante, sufocante, quase sublime. Flagra o momento em que um pintor, já esquizofrênico, tenta fugir do manicômio onde o internaram. Lars Hertervig, filho de uma família muito pobre, tem uma chance de mudar de vida quando a família o torna aprendiz de pintor. Real, o personagem ainda tem seus quadros expostos nos museus da Noruega.
Os longos parágrafos de Melancolia são uma aula de literatura. Da melhor literatura. Parece que o livro está esgotado, mas vale procurar. Se encontrar, não hesite em levar para casa. É um romance encantatório. Li , nas matérias sobre o Nobel, que a Cia. das Letras e a Fósforo, duas das nossas maiores editoras, estão prestes a lançar novos títulos do autor, o que é uma grande notícia.
Quando li Minha Luta, do Karl Ove Knausgard, suas memórias esfaceladas em seis preciosos volumes, fiquei impactado. No terceiro, quando o relato foca o escritor na entrada da escola norueguesa de artes, ele narra em detalhes todo o temor e encantamento com seu professor de teatro, nada menos que Jon Fosse, cruel e exigente diante de adolescentes sonhadores e despreparados.
Traduzido em mais de 40 países, pai de seis filhos, ganhou do rei da Noruega o direito de viver permanentemente na Grotten, residência localizada no palácio real, em Oslo, honraria concedida a poucos.
Se você não conhece a literatura de Jon Fosse não sabe o que está perdendo. O cara é genial.