Elas são mulheres, artistas e promissoras em suas respectivas áreas. Além disso, a escritora Ana dos Santos, a cantora Dessa Ferreira e cineasta Thais Fernandes têm em comum o desejo de serem lidas, ouvidas e assistidas todos os dias, não só em datas comemorativas.
Ainda assim, tendo como motivo este 8 de março, quando se celebra o Dia Internacional da Mulher, GZH apresenta as três artistas que vêm se destacando na cena cultural do Rio Grande do Sul, como um convite para desbravar a obra delas ano adentro. Confira:
Ana dos Santos
Foi através de um diário ganhado na infância que Ana dos Santos, 47 anos, descobriu o poder das suas palavras. Um presente da mãe, professora, responsável por fazer dela uma apaixonada por literatura. Naquela época, seu livro preferido era Lili Inventa o Mundo, de Mario Quintana. Foi pelo encantamento com os versos do poeta que Ana começou a também combinar palavras, transformando os diários em subjetivos cadernos de poesias. Hoje, é ela uma das poetas gaúchas mais promissoras da sua geração.
É autora de Flor (World Art Friends), Poerotisa (Figura de Linguagem) e Pequenos Grandes Lábios Negros (Venas Abiertas), vencedor do Prêmio Milton José Pantaleão de Literatura Independente. As obras, todas esgotadas, trazem um compilado da versatilidade poética da autora, que vai da poesia de protesto, abordando temas como o racismo, até uma sensível e também combativa poesia erótica. Escrever sobre sexo, para ela, é negar os estereótipos que pairam sobre a sua existência.
— A mulher negra sempre foi vista como um objeto sexual, alguém para servir e dar prazer, mas eu decidi rejeitar isso, não aceitar ser colocada nesse lugar. Quando escrevo poemas eróticos, quero dizer que a mulher negra tem direito a receber prazer e a escolher de que forma quer receber prazer — explica Ana.
Foi pelos versos eróticos e de cunho político que Ana se tornou conhecida nos saraus literários de Porto Alegre, mas ela está longe de ser uma escritora para mulheres ou para negros. Ana dos Santos pode e deve ser lida por todos. Não só porque a escrita de mulheres negras é tão universal quanto qualquer outra, mas também porque a sua poesia vai além das características que a constituem — como ela faz questão de enfatizar, rejeitando mais uma vez os estereótipos.
— Eu tenho poemas sobre erotismo, poemas sobre negritude e poemas que não são sobre nada disso, nos quais eu me coloco como um ser humano que vive no mundo, que sente alegria e que sente dor — afirma. — Há quem ache que mulheres só podem ser lidas por mulheres, negros só podem ser lidos por negros e, enquanto isso, o lugar da dita "literatura universal" segue sendo ocupado por homens brancos. Se a vida inteira todos nós lemos e entendemos o que escreve um homem branco, todos nós também podemos ler e entender o que escreve uma mulher negra.
Dessa Ferreira
— Falar de música brasileira é falar de música afro-indígena — decreta Dessa Ferreira.
A cantora e instrumentista é uma das mais destacadas artistas da cena da música independente da Capital, onde vive há cerca de 10 anos. Natural de Brasília, Dessa veio para Porto Alegre cursar Música Popular na UFRGS. Foi junto da gaúcha Gutcha Ramil e da brasiliense Kika Brandão que ela fundou o grupo musical Três Marias, já consolidado no cenário musical da cidade (hoje, o grupo também conta com Pâmela Amaro, Thayná Martins e Tamiris Duarte).
Nas veias da artista, filha de pais nordestinos, correm os sangues negro e indígena que ela luta para ver referenciados na cultura do país. Dessa vem dando a sua contribuição, entre outras formas, através do projeto Música Afro-Indígena Contemporânea, contemplado com o edital Natura Musical para a gravação de três videoclipes de composições autorais dela e uma série de atividades online sobre o tema.
— A música afro-indígena é fundante da música brasileira, todos os estilos bebem nessa fonte, do sertanejo ao pop. Se a gente for analisar musicalmente, essas matrizes estão presentes em tudo, mas não são reconhecidas, não recebem o crédito — explica ela.
A artista prepara o lançamento do seu primeiro álbum para este ano. Composto por nove canções — entre elas, as três que terão videoclipes financiados pelo Natura Musical —, Pulso é o manifesto de Dessa Ferreira contra o apagamento das contribuições de negros e indígenas na música brasileira. Um manifesto dançante, de som de tambores e de composições potentes (vide a homônima Pulso, que já pode ser ouvida nas plataformas digitais).
— São todas canções que falam sobre religiosidade, sobre ancestralidade, sobre racismo. É um resgate ancestral, ao mesmo tempo que uma denúncia — adianta a artista.
Thais Fernandes
Uma excelente cineasta que, além disso, é mulher. Esta é uma boa definição para Thais Fernandes, 38 anos, um dos mais talentosos nomes da nova geração do cinema gaúcho. Defensora de que "as mulheres precisam urgentemente ser vistas para além do gênero", Thais é enfática ao decretar como deseja ser reconhecida:
— Não como uma cineasta que fala sobre coisas relacionadas ao feminino, mas como uma cineasta que faz bons filmes sobre qualquer assunto. Não quero ser chamada para projetos porque eu sou mulher, quero ser chamada porque eu sou boa. Sou uma cineasta que também é mulher, não uma mulher que é cineasta.
A universalidade reivindicada por ela não significa deixar de lado as questões das mulheres, apenas não se resumir a elas. Tanto que é de Thais a direção do premiado Um Corpo Feminino, que em 2018 venceu a mostra de curtas gaúchos do Festival de Cinema de Gramado e o Troféu Assembleia Legislativa de melhor roteiro. Mas, passando longe da temática feminina, também é dela o aclamado Portuñol, eleito o melhor longa gaúcho no Festival de Cinema de Gramado de 2021.
O documentário sobre como as línguas portuguesa e espanhola se entrelaçam na fronteira do Rio Grande do Sul, formando o "portunhol", foi o primeiro longa-metragem dirigido por Thais. Ela já atuou e dirigiu no teatro e trabalhou em produções para televisão, mas tem no cinema documental a sua grande paixão. Jornalista de formação, acredita que o lado repórter acabou se impondo.
— Fui da grande reportagem para o documentário – brinca.
Para este ano, Thais prepara o lançamento de seu segundo longa-metragem, no qual divide a direção com o cartunista Rafael Côrrea, autor da tira Artur, o Arteiro, publicada em Zero Hora. O filme, mistura de documentário com animação, é justamente sobre o cartunista, diagnosticado com esclerose múltipla. A obra é baseada nos quadrinhos Memórias de um Esclerosado, por meio dos quais Rafael aborda a sua relação com a doença. Tem tudo para ser mais um excelente filme da excelente cineasta Thais Fernandes, que também é mulher.