Logo após as urnas confirmarem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente eleito enfatizou a importância da cultura em seu primeiro discurso. Prometeu recriar um ministério para a área, além de implementar comitês estaduais relacionados ao setor, para que “se transforme numa indústria de produzir emprego e de gerar renda”.
Sobre um trio elétrico na Avenida Paulista, em São Paulo, cercado por milhares de apoiadores, Lula relacionou o respeito à cultura com o respeito à democracia:
— Quem tem medo da cultura é quem não gosta do povo e não gosta de liberdade. É quem não gosta de democracia, e nenhuma nação do mundo será uma verdadeira nação se não tiver liberdade cultural. O Brasil vai recuperar a sua cultura.
Não serão poucos os desafios para a equipe que será comandada pela cantora Margareth Menezes, que deve ser oficializada nos próximos dias como ministra da Cultura. Nos últimos anos, o financiamento da produção cultural foi objeto de embates ideológicos e, resultado disso, especialmente nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, os mecanismos de fomento, como a Lei Rouanet, foram desidratados. Para os próximos quatro anos, um primeiro passo esperado por especialistas ouvidos por GZH é a mudança de status da pasta.
Assim que Bolsonaro assumiu a Presidência, em janeiro de 2019, o Ministério da Cultura (MinC) tornou-se Secretaria Especial de Cultura, vinculada inicialmente ao Ministério da Cidadania e, depois, ao Turismo. Sete nomes comandaram a pasta – Henrique Pires, Ricardo Braga, Roberto Alvim, Regina Duarte, Mario Frias, Hélio Ferraz e André Porciuncula –, além de José Paulo Martins, que a assumiu duas vezes interinamente. A alta rotatividade reflete descontinuidade. As saídas foram marcadas por desavenças e até acusação de apologia ao nazismo, no caso de Alvim. Houve compromisso assumido com as bases ideológicas do bolsonarismo, o que se acentuou na gestão de Frias.
Estruturalmente, a situação é descrita como “calamitosa” por Márcio Tavares, secretário de cultura do PT, integrante do grupo de transição do novo governo e nome indicado para ser o novo secretário nacional da Cultura – o segundo na hierarquia do ministério. Entre outros exemplos, Tavares, que é historiador e gaúcho de Sapucaia do Sul, cita o incêndio da Cinemateca Brasileira, ainda em 2019, a perda de pesquisadores de carreira na Fundação Casa de Rui Barbosa e o enfraquecimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), especialmente quando Bolsonaro afastou diretores que pediram a paralisação de uma obra da loja Havan em Rio Grande, no sul do Estado. E reclama do orçamento disponível para 2023, que seria “absolutamente insuficiente”:
— O orçamento prevê menos de R$ 30 milhões para investimentos. Isso não atende nem as demandas para manter os museus e as instituições protegidas.
A já histórica execução parcial orçamentária e a dificuldade de manter em dia processos cotidianos expõem a fragilidade da estrutura ministerial do setor (cultural). Não basta mudar o nome da pasta, indicar um ministro benquisto pela classe artística, mas fazer o que nunca foi feito a contento em nenhum governo anterior.
GABRIEL CHATI
Professor da UniPampa
Gabriel Chati, professor do curso de Produção e Política Cultural da Unipampa, frisa que a perspectiva de resgate ou recriação do MinC deve ser algo para além do simbólico, sendo necessário planejamento, recursos humanos, técnicos e financeiros à altura dos desafios das políticas públicas culturais.
— A já histórica execução parcial orçamentária e a dificuldade de manter em dia processos cotidianos, como a avaliação das prestações de contas dos projetos, são elementos que expõem a fragilidade da estrutura ministerial do setor — comenta Chati. — Nesse sentido, não basta mudar o nome da pasta, indicar um ministro benquisto pela classe artística, mas fazer o que nunca foi feito a contento em nenhum governo anterior.
A carta do RS
A mudança de status da pasta é o primeiro ponto sugerido pela Carta do Rio Grande do Sul, documento elaborado após o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, realizado em diferentes localidades do Estado entre 10 e 13 de novembro, com a participação de delegações das cinco regiões do país. No texto, há expectativa por um ministério “arejado, democrático e representativo”, que se “organize a partir de uma remodelação de inovação institucional com a finalidade de ampliar a abrangência das políticas culturais”.
— É uma sinalização de que o setor é relevante — resume Beatriz Araujo, secretária de Cultura do Rio Grande do Sul. — Não é simplesmente recriar, é pensar uma nova estrutura de ministério que atenda com eficiência as demandas atuais.
O segundo ponto da Carta do RS propõe “promover um processo pactuado de regulamentação das Leis Aldir Blanc II e Paulo Gustavo”, que “considere a experiência acumulada pelos gestores municipais e estaduais no processo de implementação e aplicação dos recursos da Lei Aldir Blanc I”. Garantir os repasses dessas duas leis, que, juntas, podem injetar R$ 7 bilhões na economia criativa, é um dos primeiros desafios do novo governo. Ambas foram aprovadas pelo Congresso, mas Bolsonaro vetou-as. Após o veto ter sido derrubado pelo parlamento, o presidente atual adiou os repasses para 2023 por meio de uma Medida Provisória, que também acabou suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Tavares diz que esses dois incentivos são vistos como essenciais pelo novo governo. Segundo ele, a criação dos comitês regionais irá auxiliar nas instâncias consultivas, possibilitando aos Estados terem maior porosidade com as demandas do setor.
A Lei de Incentivo à Cultura, ou Lei Rouanet, também está entre as urgências da pasta apontada pela Carta do RS. Desde 2019, o mecanismo passou por modificações significativas. Naquele ano, foi publicada uma instrução normativa que reduziu o teto dos projetos de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. Na pandemia, tornaram-se corriqueiros os atrasos no repasse dos recursos e o arquivamento de projetos. Quando Mario Frias assumiu, vieram novas alterações. Em 22 de dezembro de 2020, a Portaria nº 24/20 estabeleceu uma média de análise de seis processos por dia. Segundo o documento, a medida tinha como objetivo “evitar o aumento do passivo de prestação de contas” da secretaria. O Tribunal de Contas da União (TCU) suspenderia essa portaria em setembro de 2021.
Em março do ano passado, foi encerrado o mandato do biênio 2019/20 da Comissão Nacional de Cultura (CNIC), que aprova os projetos para captar recursos com abatimento de Imposto de Renda, base de funcionamento do mecanismo. A renovação da CNIC só ocorreu em outubro. Nesse meio tempo, foi publicada a Portaria MTUR nº 12, que deu ao titular da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) o poder de proferir os atos pertinentes à comissão. Ou seja, o poder de decisão do que era aprovado ou não pela Lei Rouanet ficou com André Porciuncula – posto que depois foi ocupado por Lucas Jordão Cunha.
Adriana Donato, doutora em Políticas Públicas (UFRGS) e especialista em políticas culturais, lembra que, em outubro 2021, foram descredenciados 174 pareceristas, responsáveis pela análise técnica dos projetos – o que acarretou no atraso das análises.
— Provavelmente será publicado edital para contratação de novos pareceristas, bem como a realização de treinamento, pois não houve na última contratação, em 2019 — observa Adriana.
Ela cita também a possibilidade de revogação do decreto nº 10. 755/21, que foi publicado em 26 de julho de 2021 trazendo alterações nas finalidades da lei, entre as quais a inclusão de “atividades culturais de caráter sacro, clássico e belas artes” e a exclusão dos incisos “fomentar atividades culturais afirmativas que busquem erradicar todas as formas de discriminação e preconceito” e “apoiar as atividades culturais de caráter inovador ou experimental”, entre outras mudanças.
— Foi alterado o capítulo que trata da CNIC, reduzindo competências coletivas, passando a ser instância recursal e atribuindo maior poder de decisão ao secretário especial da Cultura e ao ministro do Turismo — acrescenta Adriana.
A pesquisadora aposta também na revogação da Instrução Normativa nº 1, publicada em fevereiro de 2022, que determinou reduções mais significativas na Rouanet. Por exemplo, o teto para projetos caiu de R$ 1 milhão para R$ 500 mil, e o teto do cachê de artistas, de R$ 45 mil para R$ 3 mil. Tavares garante que o grupo de transição irá recomendar a revogação dos decretos citados, além de propor a instituição de um novo decreto que “faça o mecanismo funcionar de forma democrática”.
— A intenção é de que o funcionamento da lei não fique na dependência do canetaço do secretário. Queremos recolocar o fomento para funcionar dentro dos melhores padrões de transparência — diz Tavares.
Para Henilton Menezes, gestor cultural e ex-secretário responsável por fomento em parte dos governos Lula e Dilma Rousseff (2003-2016), o principal desafio da nova gestão será “trazer de volta a abalada credibilidade da lei”, buscando mecanismos que possibilitem a desconcentração dos recursos, em especial com o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e a implementação de procedimentos que tornem o mecanismo mais rápido.
— A lei foi tão depauperada nos últimos anos que dificultou sobremaneira a operação pelos proponentes e patrocinadores. Os fazedores da cultura brasileira foram atacados de forma irresponsável, e os gestores criaram barreiras, limites, regras absurdas, passando para a sociedade que o mecanismo seria nocivo e não um justo apoio ao setor. O desafio é mudar isso — afirma Menezes.
Por conta das dificuldades na aprovação de projetos pela Rouanet, outros mecanismos, caso, por exemplo, da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Rio Grande do Sul, passaram a ser mais procurados. Em 2019, foram apresentados 397 projetos na lei estadual, que totalizaram R$ 74,5 milhões solicitados. Em 2022, foram 1.145 projetos apresentados, solicitando R$ 329 milhões.
— Esse aumento que se deu não se atribui só à paralisação da Rouanet. Nós diminuímos as contrapartidas e dobramos o nosso limite anual. Em 2019, tínhamos R$ 35 milhões de limite por ano, hoje nós temos R$ 70 milhões. Fizemos um movimento para que a procura crescesse, dado o enfraquecimento do mecanismo nacional — explica a secretária Beatriz.
Fundo para o audiovisual
O governo Lula terá também o desafio de retomar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). No final de agosto, Bolsonaro chegou a propor excluir do plano orçamentário de 2023 a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que financia a atividade do setor no país. É desse tributo que vem a maior parte do dinheiro do FSA, operado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Contudo, em novembro, a Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou o relatório de receitas ao projeto de Orçamento da União para 2023 com a inclusão de R$ 1,2 bilhão em receitas vindas da Condecine, que não estava na proposta do Executivo.
De acordo com Tavares, a transição garante a permanência da Condecine:
— É uma contribuição que já está apoiada pelos setores industriais e por toda a cadeia produtiva. Não existe nenhum “senão” em relação a Condecine, que ancora a produção do audiovisual brasileiro e garantiu a expansão do cinema nacional nos últimos anos.
Tavares assegura que o novo governo trabalha para manter a Condecine e, a partir do ano que vem, promover o retorno de editais para fomento no audiovisual:
— Que a gente volte a ter uma produção crescente, tanto em termos de qualidade quanto de quantidade. Esse é o horizonte com o qual estamos trabalhando.
Além disso, o novo governo também deve trabalhar para retomar o funcionamento pleno da Ancine. Aletéia Selonk, sócia-diretora da produtora porto-alegrense Okna, responsável por diversos filmes lançados recentemente, afirma que o forma como foi desenvolvido e estruturado nos anos anteriores, “parou”. E, com isso, houve desemprego e fechamento de empresas do setor.
— Sofremos diante da menor participação do produto brasileiro no mercado nacional, da não aplicação da cota de tela, da falta de fomento e investimento capilarizado entre os eixos da cadeia produtiva — lamenta a produtora.
Aletéia também destaca uma perda simbólica no audiovisual brasileiro, por ter sido, segundo ela, “minado com informações falsas e desrespeito”:
— Infelizmente, os discursos contra a produção nacional acabaram contaminando várias partes da sociedade e, com isso, vimos a hostilização a profissionais e a produtos culturais do Brasil por parte dos brasileiros.
O advogado e cineasta Henrique de Freitas Lima, que é presidente da Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual, cita algumas demandas que o novo governo terá que observar no setor audiovisual:
— Equacionar de vez o passivo de prestações de contas não finalizadas, aplicando a prescrição de cinco anos a contar da entrega dos documentos, diminuindo o passivo de mais 4 mil projetos pendentes, retomar a fluência dos contratos e editais do FSA e, especialmente, regular as plataformas de streaming, equiparando-as à TV por assinatura e garantindo investimentos no licenciamento de produtos nacionais e cota de títulos no catálogo.
Regime de fomento
O quarto e último ponto da Carta do Rio Grande do Sul aborda o Marco Regulatório do Fomento à Cultura. Pede a aprovação e a implementação do Projeto de Lei nº 3905/2021, que, conforme o documento, “estabelece um regime próprio para o fomento à cultura no Brasil como forma de qualificar a relação entre o Estado e o setor cultural, com regras claras e mais compatíveis com a realidade da cultura brasileira”.
De acordo com o projeto, a execução do regime próprio de fomento à cultura poderá contar com repasses da administração pública, nas categorias de execução cultural, premiação cultural e bolsa cultural, ou mediante contrapartidas do setor privado, na forma dos termos de ocupação cultural e de cooperação cultural. A proposta ainda prevê uma série de regras para chamamento público, análise e seleção das iniciativas culturais.
Beatriz Araújo explica que hoje há exigências para o fomento à cultura que não atendem ao setor em toda a sua diversidade. De acordo com a secretária, o marco regulatório traz um olhar atento para os atores que têm outro perfil, ou seja, que não podem trabalhar da mesma forma como, por exemplo, grandes produtores do audiovisual.
— Com a Aldir Blanc, nós conseguimos repassar recursos para agentes culturais que estão localizados na periferia do RS Seguro. Esses trabalhadores da cultura são os mais vulnerabilizados. Não têm nota fiscal ou formalização. Como você vai reconhecer um agente ou uma entidade que faz trabalhos que tenham relevância para uma comunidade? Não tem a possibilidade de fazer a prestação de contas exigidas desses agentes — avalia Beatriz. — A ideia é aprimorar a atuação do Estado dentro do setor cultural. Não é abrir porteiras, mas atender a demanda de cada local e situação que temos no Brasil inteiro.
Vamos garantir um orçamento mínimo para poder dar conta das demandas de conservação e programação e aí sim dar início às políticas de fomento. Precisamos realizar uma conferência nacional de cultura em 2023 para construir um novo plano nacional de cultura .
MÁRCIO TAVARES
Futuro secretário nacional da Cultura
Tavares garante que a cultura será uma “vértice prioritária” do novo governo. O setor, segundo ele, será tratado como um elemento fundamental não só na produção de emprego e renda, mas também na produção simbólica. O primeiro passo, diz, será trabalhar na reestruturação do ministério.
— Vamos garantir um orçamento mínimo para poder dar conta das demandas de conservação e programação e aí sim dar início às políticas de fomento. Precisamos realizar uma conferência nacional de cultura em 2023 para construir um novo plano nacional de cultura — finaliza.