Josué Guimarães (1921–1986) conquistou uma façanha para escritores de qualquer época: emplacou publicações nas listas de mais vendidos ao mesmo tempo em que era tratado com respeito e admiração pela crítica. Às vésperas do centenário de nascimento do autor, na próxima quinta-feira (7/1), estudiosos de sua obra tentam compreender porque a repercussão e a memória sobre Josué se diluíram nas últimas décadas – e também trabalham pela realização de homenagens e pela descoberta de seus textos por novas gerações.
No dia do centenário, a Universidade de Passo Fundo (UPF), instituição que abriga o Acervo Literário de Josué Guimarães (Aljog), promove a primeira de uma série de lives mensais sobre a vida e a obra do escritor. A live de abertura do projeto, nomeado de Tempos de Josué, contará com os músicos Cássio Borges e Lari Acevedo, alunos do Curso de Letras da UPF, que apresentarão canções compostas a partir da obra do homenageado.
– A novidade é que pretendemos fazer a transmissão de dentro do acervo do autor, tornando um ambiente de pesquisa um espaço de celebração – aponta Miguel Rettenmaier, coordenador do Aljog.
Mais celebrações estão sendo programadas. A principal será realizada de 3 a 7 de maio, com transmissão online pelas plataformas da UPF. Trata-se do Colóquio 100 Josué, com as participações de críticos e pesquisadores da obra literária e de aspectos relacionados à personalidade e à atuação política e jornalística do autor. As ações estão sendo programadas pela UPF em parceria com a L&PM Editores, a Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, representada pela Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, e o governo do Estado, representado pelo Instituto Estadual do Livro.
São homenagens a um escritor com algumas características comparáveis a Erico Verissimo e Moacyr Scliar, principalmente quando o assunto é a capacidade de se comunicar com o leitor. Assim como Erico e Moacyr, Josué não era afeito a maneirismos, mantinha uma linguagem clara e direta, com personagens bem construídos e enredos envolventes.
– São três autores muito importantes porque se comunicam de modo profundo e com linguagem simples. São amigos do leitor. Tem muito escritor que gosta de torcer a cabeça do leitor. É preciso se comunicar com o leitor, e não brigar com ele – afirma a professor Regina Zilberman.
Além da semelhança de linguagem, também há uma aproximação ao valorizar a identidade e o passado regionais sem deixar de lado temas nacionais urgentes. Em 1977, por exemplo, quando já era um escritor de renome nacional, com os dois volumes de A Ferro e Fogo lançados, Josué muda de editora para abordar um tema que ainda assustava as casas editorais do centro do país: a ditadura militar. É quando lança, pela L&PM Editores, É Tarde para Saber, sobre o um guerrilheiro urbano que se apaixona por uma jovem rica, filha de pais conservadores.
– Esse romance foi um enorme sucesso à época. O tema da clandestinidade ainda não era abordado pela literatura com tanta intensidade. Foi um livro que atraiu muitos jovens para a leitura – lembra Regina Zilberman.
A comparação com Erico e Scliar, no entanto, tem limitações. Josué atualmente não é tão lembrado e reeditado como os dois célebres conterrâneos. Entre os possíveis motivos para a obra do autor não ser atualmente tão difundida, estão algumas deficiências de seu trabalho, que já foram apontadas por especialistas.
– Camilo Mortágua teve uma leitura muito envolvente. Lembro que, em Porto Alegre, muita gente falava sobre ele. Era um momento em que a cidade não aparecia muito na ficção. Já reli esse livro e percebo que tem alguns problemas de revisão, algumas descontinuidades. Dizem que o Josué escrevia muito, mas não era de retomar, de refazer. Isso tem um pouco a ver com o jornalismo à moda antiga, a pressão de produzir, de publicar – avalia o professor Luis Augusto Fischer.
Apesar de eventuais falhas que possam ser apontadas em um ou outro livro de Josué, o maior motivo para o relativo esquecimento não são os trabalhos que publicou, mas aqueles que não teve tempo de escrever. Josué não deixou uma bibliografia tão extensa como a dos colegas citados. Na verdade, seus trabalhos mais significativos foram produzidos e publicados em menos de uma década: A Ferro e Fogo I – Tempo de Solidão (1972), A Ferro e Fogo II – Tempo de Guerra (1975), É Tarde para Saber (1977), Os Tambores Silenciosos (1977) e Camilo Mortágua (1980).
Josué descobriu tardiamente a vocação de escritor. Seu primeiro livro, a coletânea de contos Os Ladrões, só foi publicado em 1970, quando ele já contava 49 anos de idade. Apesar da profusão de resenhas elogiosas que recebeu naquela década, não manteve a mesma verve nos anos 1980. Além disso, um câncer intestinal abreviou sua vida em 1986. Tinha 65 anos quando morreu.
– Os anos 1970 são a grande década de Josué em termos de produção e prestígio. Alcançou reconhecimento nacional. Nos anos 1980, a literatura brasileira toma nova direção. Essa ficção mais histórica e política saiu um pouco de foco. As narrativas passam a ser mais subjetivas, de vanguarda. E então Josué vai ficando para trás – observa Regina Zilberman.
A pesquisadora complementa:
– Ele faleceu em 1986. Ou seja, quando obra dele começou a perder impacto diante do público, ele infelizmente saiu de cena. É por isso que Josué parece ter ficado um pouco para trás na memória do público e dos historiadores da literatura. Isso é uma pena, pois ele teve virtudes muito importantes. Era um escritor que sabia contar uma boa história.
Para Luis Augusto Fischer, novas edições de seus livros merecem ganhar as livrarias:
– Josué deveria ser revisto e reeditado com certo rigor, talvez cotejando com manuscritos dele, porque merece leitura.
A própria vida de Josué daria um livro cheio de reviravoltas e aventuras. Nascido em São Jerônimo, em 1921, filho de um telegrafista, cresceu entre Rosário do Sul e Porto Alegre. Em 1939, já havia iniciado sua carreira como jornalista no Rio de Janeiro. Trabalhou para diferentes jornais e revistas, mas também teve uma passagem pela política, elegendo-se como o vereador mais votado de Porto Alegre em 1951, pelo PTB. Contudo, renunciou ao mandato e no ano seguinte viajou à China e à União Soviética como correspondente do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro. Depois de um trabalho marcante como cronista na Folha da Tarde, foi contratado por Assis Chateaubriand para reformar o vespertino carioca Diário da Noite, dos Diários Associados, em 1957. Em 1961, entrou para a Agência Nacional, de onde foi demitido em 1964 após um forte atrito com Darcy Ribeiro – com quem, apesar das diferenças, manteve laços de amizade pelo resto da vida.
Com o golpe de 1964, passou a ser perseguido por conta de suas posições políticas. Chegou a usar nomes falsos e começou até mesmo a vender títulos de Previdência para sobreviver. Na década de 1970, o escritor se autoexilou em Portugal, onde fundou seu próprio jornal, o Chaimite.
Em 2016, um periódico lisboeta especulou que Josué era, na verdade, um agente secreto a serviço da KGB, a polícia secreta soviética. Familiares e amigos negaram o envolvimento.
– Josué não escondia o que pensava. Era uma pessoa de opiniões políticas conhecidas. Seria um espião meio incompetente, eu acho – fez graça o escritor Luis Fernando Verissimo, à época.
De volta ao Brasil, nos anos 1980 tornou-se um cronista de referência na opinião pública nacional, com uma coluna na Folha de S. Paulo, jornal cuja sucursal gaúcha era dirigida por ele.
A mesma coragem com que enfrentou a censura e o poder dos militares também se manifestou na sua literatura. Josué tomou para si a tarefe de narrar a colonização alemã no Rio Grande do Sul, com A Ferro e Fogo, uma trilogia que permaneceu inacabada, com apenas dois volumes lançados (o inconcluído Tempos de Angústia encerraria a série). Em Os Tambores Silenciosos, flertou com o realismo mágico e abordou o poder ditatorial. Já em Camilo Mortágua, recuperou a história da decadência das oligarquias rurais do Estado de maneira sóbria e aprofundada.
– Temos muito a aprender sobre nós e sobre o nosso passado com Josué Guimarães – conclui Regina Zilberman.
Alguns livros essenciais
- A Ferro e Fogo (1972) – O papel dos imigrante alemães na formação do Rio Grande do Sul ainda não havia sido trabalhado pela literatura até o lançamento deste livro. Dividido em dois volumes, trata da chegada das famílias ao Estado, na segunda década do século 18, e se estende até o início do movimento d'Os Mucker em 1870. Um terceiro tomo da saga permaneceu inacabado.
- Depois do Último Trem (1973) – O protagonista deste romance retorna à cidade ficcional de Abarama, sua terra natal, após uma ausência de muitos anos. O local está prestes a ser alagado por uma barragem, por isso a maior parte das casas já está abandonada. O livro dá voz aos habitantes que ali restam, homens em descompasso com as mudanças do tempo, à espera do último trem – que já passou.
- É Tarde para Saber (1977) – Sucesso editorial entre jovens e adultos, trata da história de amor entre Cássio, um jovem envolvido com a guerrilha urbana, e Mariana, herdeira de um família rica e conservadora. Sem ser esquemático ou panfletário, o autor apresenta uma paixão impossível de ser concretizada por conta da polarização política e ideológica brasileira dos anos 1970.
- Os Tambores Silenciosos (1977) – Neste romance, Josué Guimarães deixa exposta sua admiração pelo realismo fantástico latino-americano. Em tom de sátira, descreve uma cidade ficcional no Interior gaúcho, comandada por um prefeito tirano, na Semana da Pátria de 1936. Apesar abordar a Era Vargas, o livro foi interpretado à época como uma alegoria da ditadura militar iniciada em 1964.
- Dona Anja (1978) – Em estilo de folhetim, esse livro apresenta o prefeito, o delegado e outros figurões de uma pequena cidade reunidos no bordel da Dona Anja. Na companhia das meninas da casa, eles discutem os problemas que afligem o Brasil, na noite de 3 de dezembro de 1977, quando a Lei do Divórcio é aprovada pelo Congresso. O livro inspirou uma telenovela homônima no SBT.
- Camilo Mortágua (1980) – Narra a trajetória de uma família pertencente à oligarquia rural gaúcha, desde o início do século 20 até sua derrocada, em 1964. Por meio da história do personagem-título, o livro demonstra que a falência das grandes estâncias do Rio Grande do Sul não foi um processo apenas econômico, mas também representou uma desagregação ética e intelectual.