Intitulada como a "Namoradinha do Brasil", por conta de seus papéis de mocinha, Regina Duarte enfrentará mais uma provação nesse relacionamento ao assumir a instável Secretaria Especial de Cultura. Ao longo de um ano de governo do presidente Jair Bolsonaro, três secretários passaram pela subpasta (Henrique Pires, Ricardo Braga e Roberto Alvim), que ainda trocou de ministério – da Cidadania para o Turismo.
Aos 72 anos, a atriz está no panteão das grandes atrizes da história da telenovela brasileira. Ela foi a Malu de Malu Mulher (1979), a Viúva Porcina de Roque Santeiro (1985), a Raquel Acioli de Vale Tudo (1988), a Maria do Carmo Pereira de Rainha da Sucata (1990) e a Helena de Por Amor (1997).
No entanto, a atriz gerou controvérsia com a classe artística e com o público durante a campanha das eleições presidenciais de 2002, ao gravar um vídeo para o candidato tucano José Serra (PSDB) afirmando que tinha medo de uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com o passar dos anos, Regina reforçaria seu posicionamento à direita, o que culminaria em seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro em 2018. Por conta dessa afinidade com o presidente, ela foi lembrada para a Cultura para suceder Roberto Alvim – duramente criticado após publicar um vídeo com elementos nazistas em que parafraseia uma fala de Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler.
Na subpasta, Regina terá desafios como apaziguar as relações com a classe artística, atender à demanda conservadora do presidente e rever as nomeações de Alvim, além de superar a sua falta de experiência como gestora cultural. A seguir, confira algumas dessas demandas.
Inexperiência
Estrela do primeiro time das telenovelas e atriz desde a adolescência, Regina não tem currículo como gestora cultural. Para Leandro Valiati, professor de Economia da UFRGS e especialista em economia da cultura, a falta de experiência pode ser resolvida com uma equipe tecnicamente qualificada, que vá além de disputas ideológicas e dirigismos no setor.
— Com bons técnicos, o nome para gerir a Cultura no Brasil deve ser respeitado por todos os segmentos da sociedade, que seja capaz de trazer uma atenção importante para as políticas do setor — aponta. — Por ser uma atriz conhecida no Brasil inteiro, talvez possa trazer mais visibilidade à pasta da Cultura.
O cineasta Fernando Meirelles (Dois Papas e Cidade de Deus) crê que um perfil técnico seria mais adequado para a gestão de uma subpasta tão complexa. Contudo, ele acredita que a atriz seja uma opção possível após um ano do que classifica como "bateção de cabeça".
— Respeito a Regina como artista e colega de setor, apesar de não concordar com quase nada do que já a ouvi falar sobre política ou visão de Estado. Ela parece ter bom trânsito com o futuro chefe. Tem conexões com o meio artístico e sabe a importância do setor — analisa.
Amigo da atriz, o ator Paulo Betti considera que a escolha de Regina para a subpasta é coerente por conta de sua relação com Bolsonaro.
— É uma pessoa forte no meio artístico, com posições claras e definidas. Embora discorde dessas posições, pelo que tenho acompanhado. Mas eu a respeito. Dentro do caos que temos até hoje nessa pasta, seria um movimento positivo. Sou favorável à Regina, sim — pondera.
Herança do ex e nova equipe
Para cercar-se de um time técnico na Cultura, Regina poderia rever as indicações de nomes controversos realizadas por Roberto Alvim, conforme sugestão de fontes ouvidas por GaúchaZH. A mais polêmica foi a do jornalista Sérgio Camargo para a Fundação Cultural Palmares — órgão que tem como missão preservar a cultura afro-brasileira, promovendo ações ligadas à memória, à valorização e à difusão da identidade negra.
Camargo assumiu a presidência da fundação em 27 de novembro, mas teve a nomeação suspensa em 4 de dezembro pelo juiz federal substituto Emanuel José Matias Guerra, da 18ª Vara Federal de Sobral. O magistrado atendeu a pedido em ação civil pública contra a União que questionava a nomeação e repudiava declarações do jornalista. Entre outros depoimentos, Camargo já disse nas redes sociais que a escravidão foi "benéfica para os descendentes", afirmou que não existe racismo no Brasil e defendeu a extinção do feriado da Consciência Negra. A Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou recurso ao Tribunal Regional Federal da 5ª região (TRF-5) e pretende reverter a decisão que afastou Camargo da presidência. Caso a decisão seja derrubada, Regina pretende manter o jornalista no cargo?
Entre outros nomes controversos indicados por Alvim está Dante Mantovani, que assumiu a Fundação Nacional de Artes (Funarte). Em vídeo no YouTube, ele atesta que o rock leva às drogas, ao aborto e ao satanismo.
— A primeira coisa a fazer me parece ser tirar aquela gente esquisita colocada pelo secretário anterior nas diversas posições. Sabemos que o perfil ideológico dos novos ocupantes vai pesar na escolha. "Talkey". Não tem jeito. Mas que ao menos seja gente com formação e bom senso — destaca o diretor Fernando Meirelles.
O ator Paulo Betti corrobora:
— É preciso rever as nomeações que foram feitas sem critério, de pessoas que não estão preparadas.
Outro nome controverso indicado por Alvim é o da gaúcha Letícia Dornelles, que assumiu a Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição cultural localizada no Rio de Janeiro. Ela foi sugerida ao posto por indicação do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), da bancada evangélica. Apresentadora de TV, roteirista e escritora, Letícia tem sido criticada por conta de sua pouca experiência e da decisão de afastar pesquisadores experientes de cargos de chefia da instituição.
A número 2
A primeira indicação de Regina Duarte foi recebida com desconfiança pelo setor cultural. Amiga da atriz, Janícia Ribeiro Silva, mais conhecida como reverenda Jane Silva, foi nomeada para o cargo de secretária adjunta na subpasta. Ou seja, a número 2 na Cultura.
Presidente da empresa Associação Cristã de Homens e Mulheres de Negócio, Jane é uma apoiadora ativa do presidente em suas redes sociais. Ela se projetou como uma das líderes da Comunidade Internacional Brasil & Israel (CIBI), organização cuja finalidade é estreitar a relação entre os dois países e entre cristãos e judeus. Também é defensora da transferência da embaixada brasileira no país para Jerusalém. Como pastora, atuou por 20 anos na Igreja do Evangelho Quadrangular de Belo Horizonte (MG).
A nomeação de Jane é recebida com apreensão pelo ex-secretário da subpasta, Henrique Pires.
— Sei que é amiga da Regina Duarte, de viajarem juntas para Israel etc. Mas temo que assuntos cotidianos, que exijam respostas rápidas, demorem a ser administrados pela ausência de memória administrativa. Foram exoneradas algumas pessoas que, independentemente do gestor que decidia, ofereciam alternativas dentro das normas legais. Tomara que eu esteja errado — avalia Pires.
Já o cineasta Fernando Meirelles ressalta que Regina parece ter "queimado na largada".
— Acreditei que ela poderia exercer um papel pacificador e de diálogo, o que seria muito bem-vindo. Vou me esforçar para achar que foi só um erro isolado, mas confesso que me desanimei um pouco — analisa.
Ancine
A Agência Nacional do Cinema é um dos órgãos federais que tem passado por mais impasses no governo Bolsonaro. Já se falou até em sua extinção. Em setembro, Bolsonaro anunciou um corte de 43% no orçamento de fundo do audiovisual para 2020.
No momento, a Ancine conta com a secretária-executiva Luana Maíra Rufino para ocupar provisoriamente uma das três vagas vazias da diretoria colegiada da agência. Ainda há duas cadeiras em aberto.
O cineasta e advogado Henrique de Freitas Lima crê que os principais desafios da secretaria estão, basicamente, na área do audiovisual — caso das nomeações na Ancine.
— É necessária a promulgação de uma medida provisória que reinstitua aquilo que foi vetado por Bolsonaro no projeto que prorrogava a Lei do Audiovisual (voltado para financiar produções audiovisuais) e o Recine (voltado à expansão e à modernização do parque cinematográfico brasileiro). Também a regularização dos fundos de investimentos do fundo setorial e outras providências que levem a Ancine a ter um ano normal — lista Freitas.
Relações com a classe artística
Por conta de cortes em orçamentos, declarações polêmicas e críticas, entre outras tensões, a relação do governo Bolsonaro com a classe artística é bastante turbulenta. Há uma expectativa no setor de que Regina Duarte possa amenizar a situação.
— O principal desafio é estabelecer uma ponte com a classe artística em todos os seus segmentos. Evitar os tais filtros, o contágio ideológico, a perseguição — aponta Paulo Betti.
Pauta conservadora
De qualquer maneira, caberá a Regina atender ao desejo de Bolsonaro para a Cultura: o avanço da pauta conservadora na subpasta. Em uma live no Facebook realizada em dezembro, o presidente pregou que, a partir de agora, não cabe à indústria nacional fazer filmes que abordem a "questão da ideologia" e defendeu uma releitura do período da ditadura militar.
Regina aparenta estar sintonizada com os anseios do presidente. Segundo informações do colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, a primeira proposta que a atriz apresentou para Bolsonaro reflete a linha do governo: criar um evento para a família ao lado de cada baile funk do país.
Em uma série de tuítes, a cantora Anitta criticou a suposta proposição de Regina. A artista, que despontou como funkeira, disse que torcia para que a informação fosse mentira.
Na mesma reunião realizada no Rio, na semana passada, Bolsonaro só deu uma orientação a Regina, conforme informações de Lauro Jardim: não liberar um centavo sequer para projetos ligados a bandeiras consideradas por ele de esquerda — em especial, aquelas relacionadas a temáticas LGBT+ e da diversidade.
Sem censura
Um dos anseios da comunidade artística diz respeito aos possíveis flertes com a censura que ocorreram no primeiro ano do governo Bolsonaro. Em agosto, por exemplo, foi suspenso um edital para a seleção de produções audiovisuais para a TV. O processo, que prevê a categoria "diversidade de gênero" para documentários televisivos, foi criticado pelo presidente Bolsonaro, que atacou produções de temática LGBT+ que participam da seleção.
Em outubro, a 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro derrubou a portaria por meio de liminar. A ação civil foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF), que concluiu que a portaria foi "motivada por discriminação por orientação sexual e identidade de gênero". O governo tentou reverter a decisão, mas teve o recurso negado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Também há episódios de vetos envolvendo a Caixa Cultural e o Centro Cultural Banco do Brasil. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a Caixa Econômica Federal criou um sistema de censura prévia a projetos culturais realizados em seus espaços em todo o país.
Novas regras implementadas neste ano exigem que detalhes do posicionamento político dos artistas, o comportamento deles nas redes sociais e outros pontos polêmicos sobre as obras constem de relatórios internos avaliados pela estatal antes que seja dado o aval para que peças de teatro, ciclos de debates e exposições já aprovados em seus editais entrem em cartaz. Em resposta à publicação, a Caixa alegou não haver restrições a temas.
Outra reportagem da Folha indica que, ao longo de 2019, a Caixa Cultural cancelou espetáculos teatrais com temas que desagradam os simpatizantes de Bolsonaro – pautas LGBT+ ou contendo críticas à ditadura.
Em abril, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, acatou um pedido do presidente e mandou retirar do ar uma campanha publicitária com atores que representavam a diversidade racial e sexual. Bolsonaro também solicitou a demissão do diretor de marketing do Banco do Brasil, Delano Valentim – pedido que foi acatado por Novaes.
Em décadas passadas, Regina já se posicionou contra a censura. Acompanhando mais 23 profissionais da TV Globo, em agosto de 1975, ela foi até Brasília entregar uma carta ao então presidente Ernesto Geisel. O objetivo era protestar contra censura imposta à novela Roque Santeiro, que foi proibida de estrear. A atriz não estava no elenco da novela na primeira versão – na década seguinte, ela interpretaria Porcina.
Entretanto, Regina já endossou no Instagram, no dia 12 de janeiro, um vídeo do ator Carlos Vereza apoiando o movimento de censura ao filme A Primeira Tentação de Cristo – especial de Natal produzido pelo grupo Porta dos Fundos para a Netflix, que mostra o relacionamento entre Jesus (Gregorio Duvivier) e seu amigo, Orlando (Fábio Porchat).
— Vocês plantaram, claro, vocês têm todo o direito de fazer a plantação. Agora aguardem a colheita — diz Vereza no vídeo.
No dia 24 de dezembro, artefatos explosivos foram arremessados contra o prédio da produtora do Porta dos Fundos, no bairro Humaitá, no Rio de Janeiro.