Lobão está mais manso. Pelo menos com os companheiros de matilha. Em seu novo livro, Guia Politicamente Incorreto dos Anos 80 pelo Rock, o compositor conta a história do movimento que ajudou criar e elogia os colegas da época – inclusive os que havia atacado antes, como Paralamas do Sucesso e Titãs.
– Esse negócio de geração provoca na gente sentimentos conflitantes – diz o autor. – Cabem no mesmo coração o ódio e o amor fraternal.
O mesmo amor não recai sobre Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, que, nas quase 500 páginas do volume, são espécies de antagonistas da cena roqueira.
Nesta entrevista, Lobão revê o preconceito que já teve com os colegas, busca explicações para o rock estar em baixa e, é claro, arrisca-se a falar sobre política.
Guia Politicamente Incorreto dos Anos 80 pelo Rock analisa a produção da sua geração. Por que você decidiu fazer essa revisão?
Não tinha a menor intenção de fazer isso. Até que a Leila Name, editora e minha amiga, me propôs o livro. E eu adoro essa coleção (Guia Politicamente Incorreto). Eu tinha uma péssima relação com os anos 1980. Fui um dos maiores iconoclastas daquela geração. Então comecei a escrever sob esse viés. Mas, no meio do processo, a pesquisa começou a me gritar o contrário do que eu estava fazendo. Tive que refazer todo o início do livro, até o capítulo oito ou nove.
Por quê? O que houve?
Comecei a ouvir as músicas e aí caí em mim. Eu nunca tinha ouvido um disco sequer daqueles, nunca havia colocado rock brasileiro dos anos 1980 na minha vitrola – além dos meus, claro. Ao ouvir, comecei a ter outra visão. Acoplado a uma crítica que vinha desde sempre às más gravações e a algumas "chupadas" clássicas, coisas sobreviveram e se destacaram no período. Há canções e letras excepcionais. Foi uma tremenda ironia do destino.
Você mudou de opinião, então. Alguma música ou disco desencadeou isso?
Comecei a ouvir Perdidos na Selva (da banda Gang 90), Cena de Cinema (do próprio Lobão) a Blitz, Menina Veneno, do Ritchie, as músicas da Marina. E passei a sentir um carinho enorme pelos trabalhos. A cozinha da Blitz era sensacional, as ideias musicais eram espetaculares. Comecei a perceber a elegância da produção do disco do Ritchie, que se tornou um ídolo brega, não sei como, um cara chique como ele. Aí fui enveredando para outros discos, de Cazuza, Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana. Renato Russo cantava muito. Apesar de a banda ser deficitária em termos instrumentais, eles tinham unidade, havia um borogodó qualquer ali. Os próprios Paralamas do Sucesso, que ataco bastante, me emocionaram com canções como Lanterna dos Afogados. O mesmo aconteceu com a produção protopunk e punk de Cólera, Inocentes...
O resgate da cena punk é muito interessante, porque se trata de um rock de periferia. Uma das críticas ao rock dos anos 1980 é seu caráter elitista.
Nossa turma era um caldeirão. A gente tinha maratonas musicais no Circo Voador com Biquíni Cavadão, Kid Abelha, Cólera, Coquetel Molotov, Inocentes, todos juntos. Renato Russo veio de Brasília para passar dias em Campo Grande (bairro do Rio), com o pessoal do Coquetel Molotov. Eu fazia parte de um grupo de amizade intensa com o Clemente, dos Inocentes, o Branco Mello, o Chico de Paula, que era o cineasta de Areias Escaldantes. Tinha um trânsito intenso e afetuoso na era pré-lobby, antes de 1984 e 1985. Essa era foi muito rica. Júlio Barroso ainda era vivo e ajudava nessa articulação. O pessoal do Metrô também ajudava muito. Havia todo um carinho. Isso se evaporou de uma hora para outra.
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Você já disse que o rock é um termômetro para medir o desenvolvimento de um país. Explique melhor isso, por favor.
Esse é um insight que eu tenho e que, se você verificar, realmente faz sentido. Você não tem rock em Cuba ou na Coreia do Norte, mas você tem rock em Xangai, uma cidade superindustrializada e cheia de gente maluca, mesmo que a China ainda seja comunista. Tem rock na Austrália, na Holanda, na Hungria...
Se seguirmos esse raciocínio, a Argentina deveria ser o país mais desenvolvido do mundo, já que o rock, lá, é hegemônico, diferentemente de outros países (no Brasil, a hegemonia é do sertanejo).
Mas a Argentina é culturalmente um país muito letrado. Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro. Vê o tango. Pô, o Chico Buarque de lá é o Charly Garcia. Ele é o cara máximo da cultura de lá e é do rock, assim como Fito Páez e todos esses congêneres. A Argentina sofreu com o populismo, mas é evoluída na cultura. Ao contrário do Brasil, tem um cinema pujante, por exemplo.
Muitos defendem a ideia de que a arte mais robusta não se consolida no mercado. Nos anos 1980, o rock passou por isso. no livro, você cita que as gravadoras não gostavam de letras mais trabalhadas e arranjos inusitados. A música deveria ser vulgar para tocar no rádio. E vocês subverteram isso. Qual é o caminho possível para fugir da obviedade?
Devemos lembrar que éramos oriundos da Jovem Guarda, que fez sucesso com músicas vulgares. E minha geração era formada por fãs da MPB. Nos tornamos arrimos de uma MPB vetusta, pernóstica, que de popular não tinha nada. Ganhávamos orçamento baixo, para fazer discos de má qualidade, tipo US$ 100 mil, enquanto Maria Bethânia e Chico Buarque ganhavam US$ 2 milhões para fazer uma porcaria. Fiz resenhas de vários discos do Chico. Tem uma metáfora que acho precisa: o arranjo de um disco do Chico parece um bêbado jogado num camburão. É um monte de gente tocando um monte de nota, uma esquizofrenia musical, o cara querendo tocar samba puro contratando os maiores músicos de jazz rock do pedaço. Gente tocando notas de Fender Rhodes com chorus, uma coisa vagabunda, acentos errados, o baixista tocando a nota forte onde é surdo, o baterista tocando a caixa onde é grave. É uma perversão musical, uma porcaria. Músicos excelentes, mas sem direção.
Como o rock entrava nessa história?
A gente ficava de arrimo. Éramos responsáveis por 80% da indústria. Enquanto isso, os parasitas da MPB ganhavam somas incalculáveis para vender 20 mil cópias e ficar cagando goma em cima da gente.
Chico e Caetano Veloso são, de certa forma, antagonistas em seu livro. Como você encara a importância deles hoje?
Eles estão mais poderosos do que nunca. O livro termina nos anos 1990, à beira da Tropicália 2, quando viram os favoritos de FHC. Eles ficaram com outro poder, o político. É claro que, em 1967, também tinha isso, já que eles saíram de baixo do coronelato, quando Antônio Carlos Magalhães era governador da Bahia – mas vou contar isso no meu próximo livro, o Guia Politicamente Incorreto da MPB e da Tropicália. Nos anos 1990, eles vêm para a esfera do governo federal, viram peessedebistas de ocasião. É engraçado que, em 2003, na campanha pela numeração dos discos, Caetano escreveu um artigo dizendo que eu era um comunista e ele não se uniria a um comunista. Hoje, ele é o arauto do PSOL e PC do B.
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O livro dedica atenção especial ao Sul, sobretudo aos Engenheiros do Hawaii. Você reviu sua opinião sobre a banda?
Fiquei emocionado quando ouvi as músicas deles e percebi o bojo do meu enorme preconceito. Eu tinha preconceito sobre toda aquela geração, achava que ninguém ali tocava porra nenhuma, porque eu vinha de uma geração de exímios instrumentistas dos anos 1970. Então entrei a década de 1980 desprezando a parte instrumental dos discos, mas de maneira acintosa, porque eu não ouvia nada, só o que tocava nas rádios. Quando ouvi Cidade em Chamas, percebi que a coisa era linda. Também fiquei impressionado com o Humberto (Gessinger) há uns dois anos, quando li um livro dele e achei muito bem escrito. Quando entrei no processo de aprofundamento do meu livro, me emocionei. Na verdade, fui me surpreendendo e me rendendo ao longo de todo esse trabalho.
Os Engenheiros também são um caso interessante para pensar a crítica: eram combatidos, mas os discos seguem sendo lembrados hoje.
Exato. Quem não fazia parte do triunvirato era esmagado. No caso deles, houve um preconceito específico, porque algumas bandas do (disco) Rock Grande do Sul (1985), que lançou rock gaúcho, já tinham aval maior, caso de Os Replicantes. Quem não tinha, como os Engenheiros, era muito perseguido. Mas muita coisa foi revista. É bacana perceber que, 30 anos depois, enquanto ainda temos certa jovialidade, nada foi em vão. Hoje você vê uma rapaziada de 18 anos ouvindo anos 1980. Aquele barreira do "trash 80" foi ultrapassada. O número de músicas de excelência produzidas na época é o maior a história do cancioneiro brasileiro. É o rock dando sua contribuição. O Roger Moreira seria um Adoniran Barbosa; o Evandro Mesquita, um Moreira da Silva; o Humberto, sei lá, um Lupicínio. Os roqueiros têm o mesmo valor desses caras, quiçá com mais proficuidade, já que cada um dos compositores citados deve ter uns 30 hits.
Por que não há mais uma efervescência do rock?
Há uma doutrinação de que rock é coisa de branco coxinha. Você tem que fazer rap, funk, sertanejo, tudo ao mesmo tempo, menos rock, apesar de chupar todos os condimentos do rock: tatuagem, cabelo, solo de guitarra... Tem o rock da zona sul do Rio, que é tropicaloidizado: o cara aparece com sandália de couro, barbichinha, aquele empobrecimento da própria imagem, para ser mais pobre, sujinho, com um som bundamolézimo, que se empenha num sincretismo musical estéril, bota um bandolim...
A classe média é culpada de seu status social?
Culpadíssima. Temos uma coisa contra a guitarra elétrica, contra a influência norte-americana. É toda uma doutrina que vem desde a sala de aula. Para você ser legal num festival escolar dos anos 1960 e 1970, era preciso despontar como um novo Chico. Você entrava fã do Led Zeppelin e saía fã do Edu Lobo. Naquela época já era assim. O totalitarismo é tal que hoje caciques como Caetano e Gil estão cultural e politicamente no poder. Para fazer show em festas com dinheiro público, tem que estar de boa com eles. Vivemos um totalitarismo cultural.
A volta do carnaval de rua tem a ver com isso?
Sim, os blocos, todo o mundo fazendo xixi na rua... Saí do Rio por causa disso. Há um empobrecimento cenográfico. O cara quer pedir emprestada a cultura do proletariado para poder se tornar um partícipe do proletariado por meio de uma cultura postiça. É tudo de mentira. Por isso não acontece nada relevante de fato: porque é tudo de araque.
Quanto à perda de espaço e relevância do rock, também há o aspecto tecnológico a ser levado em conta na análise. Se blitz ou Ultraje a Rigor surgissem hoje, talvez fizessem um canal no YouTube, não uma banda.
Mas, ao mesmo tempo em que há essa mudança tecnológica, não há ninguém de peso artístico surgindo. Há a plataforma, mas não há a ideia.
Talvez a gente não consiga identificar a ideia.
Acho que só se houvesse um grupo maior, uma coesão de três ou quatro bandas para formar uma visibilidade. Tem gente boa, sim. Por exemplo, tem a banda Far From Alaska, de Natal. A Cachorro Grande não tem o reconhecimento que merece. Acho que esse livro, pela pancada positiva que está recebendo, pode ajudar o pessoal a acordar, porque a gente está em uma monocultura. É preciso pluralizar as possibilidades. Ele pode servir como elo afetivo. Depois desse livro, me deu vontade de fazer um show cantando versões de músicas que não são minhas dos anos 1980. Gravei semana passada Virgem, da Marina Lima. Isso se estendeu a outro projeto, um crowdfunding para um disco duplo de vinil para o Natal. Já estou com o set list. Tem Certas Coisas, do Lulu Santos, Toda Forma de Poder, dos Engenheiros, Você Não Soube me Amar, da Blitz...
Então você ainda acredita na importância da música.
Sim. Culturalmente, precisamos dar um significado mais amplo para nossa existência como brasileiros. Do jeito que está, não temos referências. Por exemplo, eu estava em Londres há alguns anos, sentei em um restaurante, aí um cara me olhou, um espanhol, e disse "Espera aí um minuto que vou te homenagear". Aí botou Ivete Sangalo para tocar. Não falei para ele, mas pensei com meus botões: "Mas será que é isso que me representa? Onde está o segmento ao qual eu pertenço que pode ser espalhado por todo o mundo, dentro do inconsciente?". A gente tem que buscar isso, se não a nossa existência perde o sentido. Mas estou otimista. Começo o livro em 1976, mostrando que parecia impossível fazer rock naquela época, assim como o é agora. A gente pegou uma brecha cósmica qualquer e conseguiu. Isso pode voltar.
Como você está vê o momento político do país, especialmente após a condenação de Lula pelo juiz Sérgio Moro?
A desmoralização do Lula é o que há de mais positivo em tudo o que está acontecendo. Mesmo que não vá preso, essa condenação já dá uma condição humilhante na imagem dele. Isso já dá uma travada. Mas é preciso tomar cuidado, pois o José Dirceu está solto, o Judiciário está todo impregnado, o Congresso Nacional é uma podridão. A ex-presidente Dilma também precisa ser presa. Ela e Lula precisam ser julgados não apenas por corrupção, mas por alta traição. Eles evadiram divisas para ditaduras genocidas, como a da Venezuela.
Michel Temer vai até o fim do mandato?
Tem que ir até o fim. Ele é um interino, meu Deus! Não temos que ficar atarraxando lâmpada. O Brasil não suportaria um segundo presidente interino, ainda mais o Rodrigo Maia. Não dá para trocar seis por menos seis. Depois o Temer pode cumprir a pena dele... O negócio, agora, é segurar para sair do atoleiro econômico. E fazer a guerra contra o STF. Essa é a guerra. Quem está lá precisa ser eleito ou nominado por outros recursos, não pelo Executivo, que é alvo da esfera de observação e de julgamento deles.
A impressão que dá é que você já foi mais atuante no debate político nacional. Por que tem participado menos?
O movimento está pulverizado, grupos estão em litígio. Não posso ficar como general da banda, convocando as pessoas se elas estão brigadas. Meu foco é esse: não podemos ficar brigando entre nós. Enquanto isso ocorrer, não tem como nos organizarmos. A contribuição que posso dar, neste momento de brigas, é cultural, lançando um livro sobre o panorama da produção cultural brasileira, ou um disco...
Com a queda de Dilma, também acabou o fator unificador da direita?
Não concordo com isso. O racha aconteceu por outros motivos. Tem muitos bolsonaretes, tem o pessoal do João Doria, tem uns que xingam os outros disso ou daquilo. Mas uma coisa é certa: ninguém está desatento ao que está acontecendo. Na Venezuela, Hugo Chávez chegou a ser preso e depois voltou com tudo. Não estamos livres disso aqui com Dirceu e Lula soltos. Eles têm o Judiciário todo, a mídia toda, as universidades... É um poder muito maior do que o que nós temos.
Você costuma criticar o populismo de esquerda. E o de direita, com o Jair Bolsonaro, por exemplo: como não pode ser perigoso para o país?
Não acho que o movimento de direita seja perigoso. Não acho o Bolsonaro um populista de direita. Ele é uma pessoa muito querida, honesta. É ponta firme. E, para um estadista, é muito reativo. Ele responde às mínimas estocadas, por isso se torna uma pessoa muito previsível. Neste estado em que estamos, pode se tornar caricaturável. Como é uma pessoa sozinha, sem quadros, partido substancial, sem todo um estofo político que é preciso ter, vai se tornar rapidamente uma vítima. Trump está sofrendo isso agora: ele fala qualquer coisa e é massacrado. É claro que há uma vertente que apoia o Bolsonaro que é realmente muito casca grossa, que sente saudade da ditadura e tudo mais. Se a ditadura foi um remédio amargo que precisamos tomar, não podemos mais recorrer a ele agora.