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Começa no download: uma única faixa de 39 minutos e 48 segundos. Na capa, o próprio artista leva uma "enquadrada" da polícia. Dentro, cenas do cotidiano de uma grande metrópole, sentimentos reprimidos, divagações existenciais e personagens bizarros. Poderia ser um disco para ser assistido, mas Cortes Curtos é um filme para ser ouvido. Um retrato distópico dos nossos dias, pela lente experimental de Kiko Dinucci.
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Lançado no final de fevereiro, Cortes Curtos é o primeiro trabalho solo de Kiko. Seu currículo, porém, perpassa alguns dos discos mais importantes/interessantes/intrigantes que foram lançados nos últimos anos no Brasil. Bastaria dizer que ele é guitarrista e produtor do Passo Torto e Metá Metá, grupos que primam pelo experimentalismo e mistura de gêneros.
Mas Kiko também ajudou a formatar dois álbuns fundamentais da nossa época: Encarnado (2014), da parceira Juçara Marçal, e A Mulher do Fim do Mundo (2015), de Elza Soares. Também tocou nos dois disco de Criolo (Nó na Orelha e Convoque seu Buda), em Dancê (Tulipa Ruiz) e em Vira Lata na Via Láctea (Tom Zé).
Ouça na íntegra:
Tanta credencial apenas evidencia o quilate de Cortes Curtos e a jornada que propõe ao ouvinte. Ao invés de dividido por faixas, o disco é repartido no que podem ser instantâneos musicados por Kiko de sua vivência em São Paulo. Não é de espantar, portanto, que o clima geral é soturno de desesperançoso. Ele mesmo afirma, no quinto polaroid: "São Paulo, terra de um beijo só".
– Algumas canções têm mais a ver com a prosa mais narrativa, como é o caso de Uma Hora da Manhã, Morena do Facebook, Vazio da Morte. Outras canções se baseiam mais na prosa poética, como é o caso de No Escuro e Crack Para Ninar. Algumas são ficções e outras são realidades relidas com uma grande carga de delírio. São cenas corriqueiras das grandes cidades – comenta, em entrevista por e-mail.
No trajeto, o ouvinte presencia brigas na madrugada, é apresentado aos protagonistas de velhos e novos tempos (o suicida interrompido e a morena do Facebook), sofre as angustias de um coração partido (Seus Olhos e O Inferno tem Sede) e de existir (Crack Para Ninar). A trilha sonora não poderia ser mais anti-pop, pedregosa e quebradiça, cheia de distorções e interferências. A única linearidade é a falta de linearidade.
– A sonoridade do disco é violenta, mas se contrapõe também com uma certa doçura, sentimento pop, tem coisa do noise e do punk, mas tem coisa do samba também, tem sempre essa dualidade feio/bonito. O som é muito inspirado na cidade, os ruidos, barulhos, o trânsito, o caos, a correria, etc – explica Kiko.
Na coletânea de acasos reunidos por Kiko, não há final feliz. Ele deixa bem claro: "Não fique triste meu amor / Se a vida só te esculhamba / Por outro lado / Pensando assim / A gente se fode bem pra caramba".
LANÇAMENTOS
SWING VENENO
Figueroas
Nos idos de 1990, eu tinha 9 anos e minha sala de aula se dividia entre New Kids On The Block e lambada. Do primeiro eu não sinto saudades porque era ao som de Baby, I Belive in You que as meninas me esnobavam nas festinhas de garagem. Mas nutro simpatia pelo segundo, que agora me assalta com essa dupla de Alagoas. Formada por Givly Simons e Dinho Zampier, o Figueroas apresenta aquele caldo arretado de ritmos nordestinos que brota de sintetizadores e guitarras. Swing Veneno, o segundo álbum da dupla, finca o pé na lambada, mas brinca também com cumbia, caribó e brega. As letras se resumem a uma ou duas frases repetidas, tipo "Quem disse que você falou besteira / quem disse que você falou o que quis" (Jaqueline) e "Boneca selvagem seu beijo me acelera (Boneca Selvagem). Há ainda singela homenagem ao no grupo pop oitentista Gang 90 & Absurdetes em Não Há Dinheiro que Pague (refrão de Perdidos na Selva). Pessoal do consumo irônico deve se lavar por inércia com os Figueroas, mas a banda tem qualidade musical para agradar outros paladares. Lambada, 10 faixas, Deck, disponível para audição nos serviços de streaming.
DRUNK
Thundercat
Stephen Bruner é mais conhecido por ser instrumentista dos mais requisitados, já tendo emprestado seu talento a gente tão distinta quanto Suicidal Tendencies, Erykah Badu e Kendrick Lamar – cuja parceria no álbum To Pimp a Butterfly lhe rendeu um Grammy. Em seu quarto trabalho solo sob a alcunha de Thundercat, ele se apoia no R&B de cantado em falsete para mergulhar na lisergia experimental. Alias, Stone seria um rótulo melhor do que Drunk – até porque, o nível de chapação que o disco sugere não se consegue apenas com goró. Porque é disso que Thundercat trata, de criar paisagens alucinógenas, por vezes sensuais (Show You the Way, Walk on By), por vezes dançantes (Blackkk, Them Changes), outras vezes apenas para demonstrar suas habilidades como instrumentista (Uh Uh, Where I Going). Sua maestria pode ser mais bem observada na fusão de subgêneros, como no synthpop oitentista com R&B de Tokyo e na disco eletrônica de Friend Zone. Um dos grandes do ano. R&B, 23 faixas, Brainfeeder, disponível para audição nos serviços de streaming.
SICK SCENES
Los Campesinos!
Tem certos dias que acordo com uma vontade absurda de mascar chiclete sabor tutti-frutti. Mas não qualquer chiclete, tem que ser daqueles gordinhos que vem com recheio líquido. Daí eu fico o dia todo mascando aquela memória afetiva gostosa. Os Los Campesino! se encaixam nessa categoria: ouço só pelo saudosismo daqueles anos dos 2000, quando acreditávamos que o indie fofo nos salvaria sabe-se lá do que. Recém-lançado, esse sexto disco de estúdio da banda tem exatamente esse sabor de nostalgia, misturando umas baladas docinhas (The Fall of Home) com uns roquinhos para dançar dando pulinho (Sad Suppers) e faixas para acompanhar com palminhas (5 Flucloxacillin). Ao final, soa como um Arcade Fire que não sucumbiu à própria megalomania e pretensão desmedida e permaneceu divertido. Se você já passou dos 30 e poucos e ainda tem coração, vai ouvir no repeat o dia todo. Rock, 11 faixas, Wichita Recordings, disponível para audição nos serviços de streaming.