O cultuado realizador americano Eugène Green vem cristalizando sua carreira no cinema com produções internacionais que conjugam inquietações filosóficas e artísticas, rigor estético e um peculiar estilo de mise-en-scène. Depois do instigante La Sapienza (2014), escolhido melhor filme no Festival de Sevilha, o diretor, roteirista, ator e escritor volta com outra obra igualmente estimulante: O Filho de Joseph (2016), exibido em mostras de prestígio como a seção Forum do Festival de Berlim. Realização franco-belga, o drama com toques de humor tem produção dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, renomados cineastas belgas de títulos como O Silêncio de Lorna (2008) e A Garota Desconhecida (2016), cujo humanismo de viés moral ecoa também em O Filho de Joseph.
A história do longa em cartaz no Guion Center, em Porto Alegre, é centrada no jovem Vincent (Victor Ezenfis), criado em Paris com amor pela mãe, Marie (Natacha Régnier), enfermeira que sempre se recusou a revelar quem é o pai do adolescente de 15 anos. Quando finalmente descobre ser filho de Oscar Pormenor (o sempre ótimo Mathieu Amalric), editor de livros egoísta e cínico – que, apesar do sobrenome, ironicamente argumenta não ter tempo para detalhes como a própria família –, Vincent bola um plano de vingança violento. No entanto, o encontro com Joseph (Fabrizio Rongione), homem que não consegue se encaixar na sociedade, vai mudar os destinos do rapaz e de Marie.
O Filho de Joseph é dividido em cinco partes, referindo-se a passagens da Bíblia, como O Sacrifício de Abraão, O Bezerro de Ouro e O Carpinteiro. O filme constrói com luminosa delicadeza uma moderna Sagrada Família laica, porém plena de compaixão e alegria de viver – um contraponto ao estéril mundo de vaidade de Pormenor, em torno do qual parasitam figuras como uma arrivista crítica literária encarnada pela portuguesa Maria de Medeiros. Como sempre nos trabalhos de Eugène Green, as relações entre os personagens e deles com o mundo é mediada pela arte: em O Filho de Joseph, a visita ao Museu do Louvre, uma reprodução do quadro O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio, e a execução dentro de uma igreja de uma peça do compositor Domenico Mazzocchi pelo grupo Le Poème Harmonique comovem tanto Vincent quanto o público.
– As artes são uma parte importante da minha experiência humana, e sinto laços entre todas elas. Meu trabalho de artista reflete a minha experiência – justificou o diretor de 69 anos em entrevista a Zero Hora.
"Busco a interioridade dos atores"
Entrevista: Eugène Green, cineasta
Por que você quis contar essa história que ecoa duas passagens bíblicas formadoras da cultura ocidental: o sacrifício abraâmico e a Sagrada Família?
A história de um rapaz que busca o pai, e que acaba encontrando um pai substituto, veio, como em todos os meus filmes e romances, de outros lugares, não sei de onde, levada talvez por uma musa ou pelo Espírito Santo. Depois, acrescentei as referências bíblicas, que o levam para uma dimensão mais profunda e mais universal.
Você já tinha trabalhado antes com os três atores principais adultos. Fale um pouco sobre a escolha do elenco, incluindo a portuguesa Maria de Medeiros.
Para mim, o ator deve possuir uma interioridade que pode corresponder ao personagem. Gosto de trabalhar com atores que conheço e com quem já trabalhei, pois é mais fácil buscar a interioridade deles, mas é também interessante começar com alguém novo. A Natacha Régnier, o Fabrizio Rongione e o Mathieu Amalric já tiveram papéis em outros filmes que fiz, mas trabalhei da mesma maneira com os novos, a Maria de Medeiros e o Victor Ezenfis. Nunca dou indicações psicológicas. Fazemos uma leitura do texto e digo sempre aos atores para falar como se falassem a eles mesmos, para que não façam efeitos retóricos. Depois deixo vir o que vier.
O jovem Victor Ezenfis é uma revelação. Como você chegou até ele?
Concordo com você que o Victor é um ator impressionante. Para encontrá-lo, tive a ajuda de um recrutador, o que os franceses chamam de casteur, com especialidade em jovens atores. Encontrei muitos, mas percebi que era o Victor que eu buscava.
A interpretação dos atores em seus filmes lembra a dos "modelos" de Robert Bresson. Qual é a importância em seu trabalho da obra desse cineasta francês, com seu humanismo de fundo católico?
É claro que Bresson faz parte das minhas influências mais importantes. Mas se trata de uma influência que tive na adolescência e foi assimilada com muitas outras. Busco a mesma interioridade que ele, mas ele a captava nos seus "modelos" por meio da inocência deles, enquanto eu a encontro nos meus atores com a cumplicidade deles. Existem também muitas diferenças entre nós, por exemplo, o humor e a ironia nos meus filmes, que são elementos raros nos filmes de Bresson.
Poderia falar sobre a função da frontalidade nos seus filmes, quando os atores falam de frente e olhando diretamente para a câmera nos diálogos?
Muitas vezes os momentos mais importantes nos meus filmes são os diálogos. Quando duas pessoas conversam, uma parte importante da energia e da comunicação passa pelo olhar. Assim, para mim parece normal mostrar ao espectador o que vê o personagem que escuta, e então, quando o diálogo torna-se intenso, ponho a câmera entre os dois: o resultado é uma frontalidade.