Ética de trabalho não é exatamente o atributo mais sedutor de um astro do rock. Quando esse ídolo é Bruce Springsteen, porém, essa qualidade em princípio "careta" converte-se em gasolina avivando uma fogueira de energia e rebeldia que não deve nada ao mais inconsequente roqueiro destruidor de quartos de hotel. O perfil desse peculiar operário do rock é traçado por suas próprias palavras em Born to run, autobiografia lançada agora no Brasil pela editora Leya.
Batizado com o nome de um dos hinos de Springsteen – e também do terceiro disco do cantor, compositor e guitarrista, sucesso comercial que o lançou ao estrelato em 1975 –, o livro replica o fôlego de seu autor no palco, cujos shows nunca duram menos do que três horas: em 480 páginas, o leitor acompanha desde a infância do músico norte-americano na suburbana Freehold, em New Jersey, no começo dos anos 1950, até as gravações de seu mais recente disco, High hopes, lançado em 2014.
Genuíno produto do encontro de imigrantes que foram para os Estados Unidos em busca da promissão, Springsteen foi moldado por uma herança que misturava a extroversão otimista de sua linhagem italiana materna com uma sombria tendência depressiva por parte do pai de origem irlandesa. Curiosamente para um relato de rock star, esse período da vida antes da fama destaca-se nas memórias do criador dos hits Thunder road e Dancing in the dark por conta do colorido com que são evocados episódios de infância e adolescência determinantes na formação de Springsteen – e cujos ecos podem ser adivinhados nas canções de seus 18 discos de carreira.
A descoberta do rock em dois eventos históricos e decisivos para o adolescente de cidade pequena, ambos ocorridos durante o programa de TV do apresentador Ed Sullivan, é relatada com entusiasmo: a primeira, em 1956, ao assistir à performance incendiária de Elvis Presley; depois, em 1964, vendo os Beatles ("O pior e mais glorioso nome de banda de toda a história do rock'n'roll"). Após essas epifanias, a sorte estava traçada: o primeiro flerte com a música foi aos sete anos, tocando para os moleques da vizinhança com uma guitarra alugada ("Por um momento, um ínfimo momento, na frente das crianças no quintal da minha casa... senti cheiro de sangue").
O artista escreve com honestidade e uma surpreendente serenidade sobre o pai, com quem manteve uma relação tensa e conflituosa por quase toda a vida. Segundo conta, a depressão que levou o pai ao alcoolismo parece ser uma característica que se manifesta aleatoriamente em alguns familiares – não poupando nem mesmo Springsteen, que lá pelos 30 anos, às vésperas de lançar o álbum de megassucesso Born in the USA (1984), sentiu-se derrotado pelo mal e teve que preocupar auxílio médico. Ele afirma que essa condição, que nunca deixou de rondá-lo, está na raiz de sua paixão pelos palcos e em sua disposição de fazer shows intermináveis noite após noite, mesmo aos 67 anos: "Exposto na frente de milhares, eu sempre me senti perfeitamente seguro. É por isso que vocês não podem se livrar de mim".
No final do livro, Springsteen explica a mensagem subjacente às letras de My father's house e Long time comin', duas canções sobre paternidade: "Honramos os nossos pais ao não aceitar como finais e determinadas as características mais perturbadoras da nossa relação. Decidi que, entre mim e meu pai, a soma dos nossos problemas não seria o resumo da vida que passamos juntos".
É com essa mesma franqueza e humildade que Springsteen narra os dias de glória e de turbulência, o êxito com a E Street Band e depois os 10 anos que ficou separado de seus companheiros de grupo, o primeiro casamento fracassado e o amor por sua atual esposa, Patti Scialfa, vocalista de sua banda. Desdenhando o apelido "The Boss" ("O Chefão"), que evita escrever no livro, esse herói da classe trabalhadora cita outro durão, o ator e diretor Clint Eastwood, para defender que todo homem tem de saber os seus limites e sustentar afirmações modestas e autoirônicas como esta: "Para começar, não tenho lá grande voz. Tenho a força, a capacidade de alcance e a resistência de um típico cantor de bar, mas não tenho uma grande beleza com relação a timbre, ou sequer categoria. Cinco atuações por noite? Sem problema. Três horas e meia de atuação? É possível. Necessidade de aquecimento? Quase nenhuma. A minha voz cumpre as devidas funções. Mas é um instrumento de um trabalhador a prazo e, por si só, nunca me levaria a voar alto (...) Para conseguir vender o que vocês compram, tenho de escrever, tocar, editar, dar um grande espetáculo e, sim, cantar o melhor que posso. Sou uma soma de todas as partes".
The boss
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Roger Lerina
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