Se a construção da sede da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) fosse identificada com um gênero narrativo, provavelmente seria uma série de longa duração, que entra neste 2016 em sua 14ª temporada. O mais recente episódio dessa trama, que começou em 2003, foi um impasse entre o governo estadual e a empresa vencedora da licitação, que paralisou os trabalhos há um ano e meio e foi parar na Justiça. O canteiro de obras no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Parque da Harmonia) mostra um cenário desolador: a vegetação cobre as fundações, que custaram R$ 3 milhões, e os tapumes estão caídos, deixando a área suscetível ao furto de materiais - o que ocorreu.
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Embora o sonho da casa própria sempre tenha acompanhado a orquestra fundada em 1950, a parte recente do enredo tem início em 2003, quando foi lançada a pedra fundamental do que seria a futura Sala Sinfônica junto ao Shopping Total. A construção abrigaria uma sala de concerto para 1,5 mil espectadores, o Museu da Ospa e a administração. Naquele ano, Ivo Nesralla havia reassumido a presidência da Fundação Ospa com a promessa de recuperar a projeção internacional do conjunto. Chegou-se a cogitar uma reforma no então Teatro da Ospa, na Avenida Independência, que a orquestra alugava desde 1984, mas a ideia foi descartada.
Desde então, houve uma sequência de embates e frustrações. A nova sede, junto ao Shopping Total, enfrentou resistência de moradores do bairro Floresta, que temiam o afluxo de veículos na região. Houve críticas de ambientalistas, pelo impacto da obra, e de arquitetos, que reivindicavam um concurso para a escolha do projeto, que a Ospa havia encomendado ao escritório Solé Associados, responsável pela Sala São Paulo - espaço de referência internacional que serviu de inspiração para o da orquestra gaúcha.
Os protestos deram resultado. Em agosto de 2006, a Ospa anunciou um novo terreno no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. Ambientalistas e moradores mais uma vez se mobilizaram e chegaram a realizar um abraço no parque no ano seguinte. Mas a Ospa venceu, e o escritório Solé adaptou o projeto, alterando radicalmente a fachada.
Antes do início da obra, a orquestra ainda enfrentou contratempos. Em 2008, o teatro alugado na Independência teve de ser devolvido aos proprietários, e os ensaios passaram a ser realizados em diferentes locais (desde abril de 2014, ocorrem no Teatro Elis Regina, na Usina do Gasômetro). Novo revés em 2010: o prestigiado maestro Isaac Karabtchevsky - que havia assumido em 2003, a convite de Nesralla - divulgou carta de demissão na qual lamentou o impasse da construção da sede.
Empresa identifica desajuste na obra
A construção no parque começou em março de 2012, com previsão de entrega em 2014. Em 2013, foram concluídas as fundações, realizadas em duas etapas pelas empresas Serki (estaqueamento) e Epplan (construção dos blocos de concreto armado), ao custo, respectivamente, de R$ 2 milhões e R$ 1 milhão (antes, a Ospa já havia investido R$ 1,1 milhão no projeto executivo). As verbas foram captadas pela Fundação Pablo Komlós, vinculada à Ospa, por meio da Lei Rouanet. Para a terceira fase, referente ao prédio, a bancada gaúcha no Congresso articulou uma emenda que garantiu R$ 23,86 milhões (incluída a contrapartida do governo gaúcho, de R$ 4,77 milhões), por meio do Ministério da Cultura (MinC). A administração da obra passou para a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), à qual a Ospa está vinculada.
A vencedora da licitação da terceira fase, realizada em 2013, foi a Cisal Construções, que entrou no canteiro de obras em abril do ano seguinte, mas interrompeu os trabalhos em agosto, alegando desajustes na fase das fundações. Depois de quase um ano de impasse, o governo do Estado rescindiu o contrato. Designado fiscalizador da obra na Sedac em 2015, o atual diretor artístico-cultural da secretaria e diretor do Margs, Paulo Amaral, afirma:
- Detectou-se que havia uma excentricidade. Foi um erro de engenharia, de execução. Erro de quem? Teremos que descobrir.
Futuro da obra aguarda decisão judicial
Depois da rescisão do contrato que interrompeu as obras há um ano e meio, a história da Sala Sinfônica ganhou uma subtrama: a Cisal Construções cobrou do governo pelo trabalho já realizado na terceira fase da obra. Mas houve divergências sobre o valor devido.
A Secretaria de Obras calculou a dívida em R$ 117 mil, mas a empresa pediu R$ 1,5 milhão. No final de julho de 2015, a Cisal ajuizou, na Justiça, uma ação cautelar de produção antecipada de provas para que um perito apontasse o valor. Enquanto a avaliação não era realizada, o canteiro de obras não podia ser alterado, o que levou à deterioração do local.
O laudo pericial apontou dívida de R$ 1,11 milhão. As partes serão intimadas a partir de quarta-feira (20/1) para se manifestarem sobre o valor. A Sedac espera autorização da Procuradoria-Geral do Estado para voltar ao canteiro de obras. Já a Cisal Construções informou à reportagem que o responsável pelo assunto está em férias e não pode comentar.
Depois que a disputa estiver encerrada, a Sedac pretende consultar a segunda colocada na licitação, a Portonovo Empreendimentos & Construções, sobre um possível interesse em assumir a obra. Se aceitar, a Portonovo deverá realizar o serviço com o mesmo orçamento da Cisal (R$ 22,33 milhões), descontados os valores que terão sido pagos a esta empresa (R$ 477,7, mil mais a verba definida na Justiça). Caso seja necessária uma nova licitação, o atraso poderá ser maior, segundo Izabel Motta, assessora jurídica da Sedac:
- Uma nova licitação demanda muito tempo e vai acarretar gastos. Duvido que o menor orçamento, se for tomado agora, seja no mesmo valor (da licitação de 2013).
O convênio com o Ministério da Cultura que garante a verba para a terceira fase da obra será encerrado em 3 de julho, mas, segundo o MinC, poderá ser prorrogado. Em outubro, o ministério realizou uma vistoria no local e conversou com representantes do governo estadual. No entanto, essa não será a última etapa da construção da Sala Sinfônica, que tem orçamento total de R$ 46 milhões. Depois, virá a parte de acabamentos, instalações (elétrica e climática) e mobiliário, para a qual se pretende buscar patrocínio pela Lei Rouanet. Hoje, ninguém arrisca um prazo para a conclusão da obra.
Enquanto o imbróglio não se resolve, os músicos lamentam a falta de condições ideais de trabalho. Mesmo que o Teatro Elis Regina tenha a acústica mais elogiada por eles, entre os espaços provisórios nos quais a orquestra tem ensaiado, a situação ainda está longe da perfeição. Há diferença sonora entre o espaço de ensaio e as salas em que ocorrem os concertos, como o Theatro São Pedro e o Salão de Atos da UFRGS. Essa diferença "afeta a qualidade do conjunto", nas palavras do violinista Elsdor Ricardo Lenhart, vice-presidente da Affospa (associação de funcionários da orquestra):
- É como um time de futebol que treina em um ginásio para jogar no gramado. O músico que toca em conjunto sempre tem referências. Se o oboísta vai tocar a mesma frase que o clarinetista, tem que escutá-lo para seguir a mesma linha. Mas aí chega o momento do concerto, e ele não percebe tão bem aquela referência como percebia na hora do ensaio. Ou escuta mais sons do que estava acostumado.
Evandro Matté, diretor artístico da orquestra, concorda:
- No dia em que tivermos nossa sala, a orquestra vai se adaptar ao espaço, e o resultado artístico será melhor. Isso não impede que façamos o nosso melhor por enquanto.
Sonho distante
Prometida para 2014, Sala Sinfônica da Ospa não tem previsão de entrega
Obra no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho está paralisada há um ano e meio, em cenário de abandono
Fábio Prikladnicki
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