Um vídeo gravado com celular no meio de uma aula de microeconomia na USP é das coisas mais impressionantes que vi na vida. Nele, um grupo de jovens negros entra na sala e interrompe a professora para discutir o sistema de cotas. A professora diz que precisa continuar e pede que os ativistas escolham outro horário e lugar para o debate. O grupo insiste. Um aluno diz que não quer saber de cotas e que só quer ter aula. Ainda uma vez, a professora pede licença ao grupo. Uma das militantes se irrita:
- Sua aula é mais importante que a questão racial?
Como a pergunta tem um erro maluco de lógica, se inicia um feio bate-boca (que só pode existir quando se quer impor, e não conquistar, um direito).
É claro que o Brasil precisa falar sobre cotas raciais, assim como precisa falar sobre outros direitos e outros deveres. Indecente, no entanto, é se escudar na delicadeza de uma questão como a das cotas e impedir uma aula - ou qualquer outro tipo de trabalho -, instalando um fato que desconsidera o direito alheio.
Tem mais. Quando o rapaz que grava o vídeo diz que estudou em colégio particular, pago pelo "papai que trabalhou muito", dá-se novo assombro. Foi como se ele dissesse que o pai matou, roubou, estuprou e esquartejou, tamanho o asco com que os militantes reagem. De imediato, me pareceu que trabalhar e conquistar alguma estabilidade financeira tinha se tornado o mais vil e rastejante do mundo.
Não que isso interesse a alguém, mas venho de uma família de imigrantes que, como todos os imigrantes, passou dificuldades. Estudando à noite, morto meu avô, meu pai sustentava a casa com o trabalho de estafeta. Minha mãe comia mariola só no domingo, porque o vô não tinha dinheiro para os outros dias. O pai trabalhou duro, a mãe ajudou, eles melhoraram de vida, colocaram os filhos em colégio particular, fomos para a faculdade - e eu, como filha de uma família que prosperou, igualzinha a do menino do vídeo, poderia ser tachada, com nojo, de "opressora" ou de "racista".
No final, o dono do celular faz besteira e transforma o vídeo em panfleto. Mas o registro está lá. Nunca fomos julgados de forma tão leviana, burra e preconceituosa e nunca palavras foram tão injustas na boca de quem reclama. Isso pode ser tudo, menos justiça.