O centenário de nascimento de Vasco Prado, completado na última quarta-feira, é uma dessas efemérides cuja solenidade se torna necessária para que a importância de um grande artista seja recolocada e não se apague da memória coletiva. No contexto brasileiro, Vasco, que morreu em 1998, aos 84 anos, é reconhecido não só como um intérprete da alma gaúcha, mas como um dos mais consolidados referenciais da arte produzida no Rio Grande do Sul no século 20.
Em 1940, quando montou seu primeiro ateliê em Porto Alegre com o amigo Iberê Camargo (1914 - 1994) como parceiro de empreitada, os dois artistas tinham sobre os ombros o peso de uma tradição academicista de viés regional relativamente recente, porém já respeitável, representada por nomes fundamentais na formação de uma visualidade no Estado, como Pedro Weingärtner (1853-1929), Augusto Luiz de Freitas (1868 - 1962), Libindo Ferrás (1877 - 1951), Oscar Boeira (1883 - 1943), Leopoldo Gotuzzo (1887 - 1983), Angelo Guido (1893 - 1969), Fernando Corona (1895 - 1979) e João Fahrion (1898 - 1970).
A geração a que Vasco pertence, dos que cresceram no entreguerras, deu encaminhamento à herança artística não em forma de ruptura total, mas operando uma diluição dos valores dominantes responsável por abrir uma passagem. Era a primeira leva de artistas cuja formação tangenciava as escolas de belas artes, que até então tomavam para si a tarefa de ensinar e regrar critérios artísticos.
Vasco chegou a ingressar no Instituto de Belas Artes - hoje Instituto de Artes da UFRGS -, mas permaneceu ali apenas três meses. Preferiu a formação autodidata, em uma época em que os jovens artistas, interessados em conhecer a história da tradição da arte ocidental, passavam a buscar aprendizado em viagens ao Exterior. Influenciada pela arte europeia do passado e testemunhando o furor das vanguardas do século 20, essa nova geração, desapegada aos critérios normativos e às convenções das escolas de artes, fez a produção do Estado ingressar na linguagem moderna.
Em 1947, Vasco ganhou uma bolsa do governo francês e foi a Paris estudar com Étienne Hajdu e Fernand Léger. De volta da França, se estabeleceu novamente em Porto Alegre e aqui ficou até o fim de sua vida, mantendo ateliês em diferentes lugares da cidade e perpetuando-se como mestre de gerações seguintes. "Aqui fiquei e não me arrependi", costumava dizer. Consagrou-se como um dos principais nomes da tradição escultórica e da arte moderna gaúchas, além de um cidadão do mundo, autor de obras instaladas em praças e edifícios da Alemanha, Argentina, Brasil, Estados Unidos, França, Japão, Polônia e Uruguai.
Politizado e ligado ao Partido Comunista, Vasco refletiu o engajamento em sua produção, especialmente quando, com Carlos Scliar (1920 - 2001), criou o Clube de Gravura de Porto Alegre e atuou no de Bagé ao lado de Glauco Rodrigues (1929 - 2004), Glenio Bianchetti (1928 - 2014) e Danúbio Gonçalves (1925).
Esses artistas deram sequência ao regionalismo em vigor, porém fugindo do exotismo e do tom laudatório que os antecedeu com obras de força expressiva e caráter social que denunciavam a rudeza da vida e do trabalho do homem do campo. A recorrência da figura lendária do Negrinho do Pastoreio na obra de Vasco também reflete seu apreço e compaixão pelos oprimidos e pelas classes mais desfavorecidas.
Se a escultura Gaúcho de Vasco tivesse vencido o concurso que premiou O Laçador, de Antonio Caringi (1905-1981), o monumento-totem da mitologia gaúcha seria um lanceiro de feições indígenas e não o guerreiro conquistador instalado na Avenida dos Estados, em frente ao antigo terminal do Aeroporto Internacional Salgado Filho.
Enquanto Iberê seguia uma carreira consolidada no país como pintor, Vasco - ao lado de Xico Stockinger (1919 - 2009), que viria a conhecer em 1954 por intermédio de Iberê - ajudou a definir a cara do modernismo gaúcho privilegiando a escultura, em uma vertente que não seguia as vanguardas abstratas e construtivistas em voga no Rio e em São Paulo.
- Juntamente com Xico, Vasco criou uma espécie de escola no Rio Grande, influenciando praticamente todos os que vieram depois. Com a obra voltada à tradição fronteiriça, Vasco fez eco a um aspecto heroico da nossa escultura. Se Xico tinha o lado mais agressivo e guerreiro do gaúcho, o Vasco expressava o lado mais lírico da vida campeira - comenta o crítico e historiador Armindo Trevisan.
Figuras centrais na longa trajetória de Vasco, os cavalos, os cavaleiros, as lendas gaúchas, os nus femininos e os casais enamorados são emblemas de sua fidelidade e coerência temáticas.
- Vasco tinha uma escultura muito marcante, inconfundível. Tanto que, se alguém o tentasse imitar, a gente logo percebia que se parecia com um Vasco - diz o escultor Carlos Tenius.
Hábil artesão e rígido em sua pesquisa formal, Vasco esculpiu em bronze, pedra, madeira e terracota, mas também trabalhou com desenvoltura em desenho, xilogravura e gravura em metal. Sua produção sempre reverenciou a tradição da escultura ocidental, apresentando referências desde a arte rupestre e ancestral até grandes mestres modernos: as superfícies vazadas do inglês Henry Moore, as anatomias sensuais do francês Aristide Maillol, as formas arredondadas do romeno Constantin Brancusi e do alemão Jean Arp e, principalmente, os cavalos e cavaleiros do italiano Marino Marini. A vocação para a simplificação aparece nos desenhos de Vasco, saudados por muitos como obras de tanto valor quanto as afamadas esculturas em terracota, técnica em cerâmica que Vasco desenvolveu como uma linguagem própria.
- O Vasco trabalhava sem dizer muita coisa. E, quando dizia, era algo pesado - recorda o escultor Bez Batti, que foi seu aluno. - O método do Vasco era de bastante trabalho e disciplina, e eu o sigo até hoje. Aprendi com ele que artistas não podiam ter outra profissão. Ser escultor era trabalhar de sol a sol, embora isso não fosse o suficiente.