Publicada em 15/03/2014 neste caderno, a réplica de Jorge Barcellos ao meu artigo A Cidade Iconoclasta (ZH, 1º/03/2014) não animou resposta; li escassez de ideias e excesso de notas de rodapé e de sofismas acadêmicos. A resposta de Gaudêncio Fidelis (22/03), em que pese denunciar a arrogância do replicante (ter-se como voz representativa da cidade, qual edil...), bem intencionada na denúncia, evitou argumentos centrais e premiou o defensor da tutela legislativa das artes com reproduções de suas falas, aparentemente autoindiciantes, mas carentes de rejeição objetiva. A réplica de Barcellos a Fidelis (ZH, 05/04/2014) recompôs o quadro, pois nela o debatedor assume o que já insinuara: seu desamor pela arte contemporânea e sua denúncia, acusada de falta de beleza e de venalidade. Examinemos, pois, estes postulados e seus efeitos sobre o debate causador dessas trocas, a arte pública em Porto Alegre e a pretensão de controle legislativo.
Antes, cumpre lembrar que dois eventos de arte urbana realizados recentemente em Porto Alegre (grafitagem do Túnel da Conceição no Meeting of Styles; Arte e Artista na Orla, ambos entre 14 e 15/03/14) não teriam ocorrido caso vigorasse a lei de controle das artes, pois seria necessário aprovar um projeto de lei, com a verificação dos conteúdos antes que os autores criassem. Um bom exemplo dos paradoxos desse PL esdrúxulo, pois a arte é processo criativo dinâmico e livre, e não pode ser equiparada à construção de imóveis ou à abertura de empresas, nem manietada ao tempo e poder da burocracia.
É muito estranha a recusa à arte contemporânea. O que significa isso? Desejo de arte anacrônica? Desdém aos artistas que vivem no seu tempo, prêmio aos que residem no passado? Como é possível a recusa ao contemporâneo, se nele vivemos e criamos, e deste tempo partimos ao futuro? Deveremos recusar o restante do mundo contemporâneo, a globalização, a fragmentação, a velocidade, a hipercomunicação e outros bens e males, e com isso voltarmos a uma idade de ouro, no passado ideal?
Jorge Barcellos acha ruim que a arte contemporânea tenha solução econômica, em um sistema que envolve marchands, artistas, sociedade, Estado e mercado. Os artistas, decerto, deveriam criar e produzir bens espirituais, vedada a chance de terem financiadas suas obras. Caso os artistas e marchands ganhem dinheiro, deduz-se, maculou-se a pureza da arte. Por esse raciocínio, Fídias jamais deveria ter construído o Partenon, a soldo de Péricles (Atenas, séc. V a.C.), e Botticelli não deveria ter pintado com verbas da família Medici (Firenze, séc. XV d.C.). Porto Alegre não teria o monumento aos Açorianos e o Laçador, e nossa vida seria muito mais pura, beata. Ora... Cumpre dizer claramente: é insensato exigir a inexistência de um sistema das artes com circulação de valores, assim como é ingênuo deixarmos de observar como funciona este sistema, para otimizá-lo. A arte faz parte, sim, de um sistema de valores, e é melhor que assim seja, na cidade, aos nossos olhos, e sem a tutela de reis ou bispos.
O tema central é a discussão sobre o que é o belo. Tema candente desde Platão (ei-lo novamente: Tôi kalôi tá kalá kalá: "As coisas belas são belas por causa do belo", Fédon, 100d78) e aberto, pois tem múltiplas respostas e nenhuma chance de solução autoritária, especialmente por canetaço legislativo. Vemos beleza na simetria, e na sua ausência, vemos beleza no erótico e no uterino, e vemos beleza também no que nos é ou passa a ser familiar, por afinidade ou por encontrarmos razões. Vemos o belo em ideias e em atitudes, e estas nem sempre coincidem com ideais bíblicos de virtude. Na sociedade contemporânea, o belo é uma opção, e não um modelo. Eu posso achar bela a atitude de Duchamp de denunciar um sistema de valores por meio da foto de um mictório (Fountain, 1917), posso achar linda a forma humana transformada pelos expressionistas, e posso achar horrível a repetição de um modelo figurativo tradicional. O que eu não posso é querer, com meu critério, seja atual ou arcaico, arbitrar o que é belo; logo, tampouco posso exigir que a arte do outro seja bela, pois seria apenas exigir, autoritariamente, que ela coincidisse com o meu ideal de beleza. Eis por que a arte contemporânea primeiro denunciou o peso mimético da tradição clássica, no início do século 20, para avançar em uma pesquisa por novas linguagens e parâmetros para a experiência artística, na qual o passado pode estar presente mas não mais como autoridade controladora. Desde então, exigir beleza clássica é péssimo sintoma de violações autoritárias e de aguda alienação histórica.
Arte e democracia: a liberdade da arte não deve ser tomada como um arrogante cala-bocas; a discussão é mesmo parte dos melhores efeitos da arte. Bernardino Vendruscolo, Jorge Barcellos e Voltaire Schilling têm o inalienável direito de achar feias certas obras, e de o manifestar publicamente. Nada os autoriza, todavia, a suprimir essa discussão juntamente com as obras que acham feias. Eu e muitas pessoas gostamos do que eles chamam de monstruosidades, e eu certamente acho monstruosas obras que estes acham bonitas. Logo, não precisamos gostar, mas, certamente, compreender e tolerar.
Para encerrar com mais Platão: Xhalepá tá kalá: "As coisas belas são difíceis" (República 4, 435c). Não devemos pressupor um caminho fácil no acesso à arte, à sua compreensão e valorização; querer intuir o belo na Mona Lisa é uma ilusão. Foi o que demonstrei no artigo inaugural deste debate: os valores regionais reclamados no PL estão exuberantes na obra cujo ataque dá origem a esta discussão, a Supercuia de Saint-Clair Cemin; belo paradoxo. O que falta, então, é leitura, sensibilidade, reflexão, participação nos debates, mais arte e educação; enfim, falta arte-educação e não é apenas para os escolares, mas para todos os que vivemos cercados de arte e pretendemos falar dela.