Dias atrás, na Palavraria, quase uma segunda casa e um escritório para mim, eu participava de um evento, a convite de um ex-aluno, organizado em torno do livro que mudou minha vida. Confesso que nunca tinha pensado numa obra nesses termos. Antes de aceitar, voltaram-se-me outras eleições absurdas, convocadas em bares ou por meu amigo Márcio Pinheiro, que adora listas: o maior jogador vivo, o filme favorito, a música insuperável. Era hora da desculpa, tantas vezes usada: impossível escolher. Mas pensei. Logo percebi que a proposta era mais restrita. Não se tratava do melhor livro, o mais importante de um ponto de vista histórico (típica preocupação de um professor e homem de letras), mas sim do que teve um poder transformador, o que me fez ver pela primeira vez a impossibilidade de seguir vivendo em um mundo sem a fantasia das histórias literárias. Pensei então naquela obra que tivera um efeito decisivo em minha adolescência, quando, em geral, fazemos as mais dolorosas das aprendizagens, quando um livro se une a nós organicamente, contaminando até mesmo os mais remotos corpúsculos que nos constituem. Conseguem discernir este livro na vida de vocês?
Ao aceitar o convite, eu já o havia encontrado: Pergunte ao Pó, de John Fante. Era eu aos 17, uma época em que lia muito Bukowski. Havia entrado na faculdade, era um fracasso com as mulheres (não que tenha melhorado muito) e aquela ira do velho safado parecia uma forma explícita de solidariedade. As bebedeiras em seus contos nunca me disseram grande coisa. A vida de escritor marginal, sim. E então o conto em que ele falava de Fante, mais especificamente de Arturo Bandini, um jovem aspirante a escritor saído do Colorado para fazer vida e fama em Los Angeles. Isolado, escrevendo cartas desesperadas ao seu editor, Bandini sofre toda sorte de agruras para sobreviver, chega a comer apenas laranjas por um tempo, revela-se incapaz de conquistar o amor da garçonete Camilla Lopez.
Reli-o para a palestra. Já não encontrei tantas coisas que de algum modo seguem operando em mim. Mas não houve frustração. Talvez esteja gordo demais para passar por um dieta de laranjas, descrente demais para encontrar a paixão nas sandálias baratas de couro que Camilla usava. Mas Bandini segue sendo um herói pessoal, em um tempo em que os heróis emergem de seriados de TV que não tenho paciência de assistir.