O que fazer se o gosto de lembrar é tão forte que o simples toque de um moranguinho entre os dedos faz reviver acontecimentos como se eles, neste preciso momento, estivessem acontecendo?
Mesmo que não haja mais tempo para se retornar à infância que se diluiu, sobra um tempo mágico que se imagina inventado.
Pedro e Ana eram meus avós paternos. Vieram de muito longe para reconstruir a vida.
A vida de Ana cabia em uma pequena cristaleira, um móvel escuro e antigo, onde ela guardava as últimas peças de um jogo de porcelana alemã. Quando dele restaram cacos, por imprudência de Pedro, nada mais restou do muito que tivera em vida.
Pedro era o desvario, Ana, a razão. O que Ana construía com seu esforço, esfarelava-se nos sonhos de Pedro.
Quando nem havia estradas naquele interiorzão, Pedro importou um automóvel. O primeiro a percorrer aquelas não estradas. Poucos foram os que se atreveram a acompanhá-lo em seus devaneios. Não levou muito, e Pedro se cansou do brinquedo que permaneceu anos apodrecendo sob um telheiro improvisado. A Ana coube trabalhar mais no sítio, o primeiro de tantos, para amenizar o prejuízo.
O sítio era enorme para os meus poucos olhos. Imaginava-me um aventureiro a desbravar uma floresta encantada enquanto o percorria. Um jardim, uma horta, um pomar, alguns animais de leite e corte. E os canteiros de morangos.
Não sei quantos foram os sítios, mas, em todos eles, havia os canteiros de morangos plantados para mim. Ela os colhia no pé, e me pareciam rosas, tal o tamanho e o vermelho. Deliciava-me com a maciez, a doçura e o sumo açucarado. Me lambuzava de prazer.
Vasta essa mulher, mãos de tecer morangos e mel. Vasta essa mulher que sabia me receber, pelas tardes, com pão de milho coberto de banha e leite frio com café. Vasta essa mulher que apascentava as nuvens para que eu me dourasse ao sol. O menino que eu fui enrodilhou-se em suas ramagens. O menino que eu fui vaga pelo país dos sonhos em busca de seus abraços.
Dizem que as avós são feitas de açúcar. A minha era de morangos.
Opinião
Sergio Napp: Morangos
"Mesmo que não haja mais tempo para se retornar à infância que se diluiu, sobra um tempo mágico que se imagina inventado"
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