Li Zhensheng tinha nove anos quando o camarada Mao Tsé Tung liderou a revolução que instituiu a República Popular da China. Aos 23 anos, depois de estudar cinema, ele tornou-se fotógrafo do jornal da província onde vivia. Imbuído de fervor revolucionário, registrava com prazer o que acontecia à sua volta. Assim que foi deflagrada a campanha da Revolução Cultural Proletária, em 1966, e ele começou a testemunhar o que julgava serem excessos, percebeu também que algumas fotos que fazia não interessavam ao regime. Mesmo assim, não desistiu de fotografar o que, a seu ver, merecia registro, embora tenha adotado a precaução e a cautela de separar, e esconder, os negativos daquilo que poderia lhe trazer problemas.
Era 1968, ano em que jovens rebelados em Paris tomavam as ruas e decretavam que "é proibido, proibir" e a ditadura militar, aqui no Brasil, amordaçava qualquer tentativa de resistência com o AI-5. No mesmo ano, Li Zhensheng ouviu da boca de um condenado a morte, depois de sumário julgamento em praça pública e segundos antes de ser fuzilado, a frase que lhe atormentou por meses: "Esse mundo é sombrio demais".
Aquele foi um momento de ruptura. O fotógrafo fez um buraco no assoalho do lugar onde morava e ali passou a "arquivar" a história. Comportamento muito parecido com o de Aurélio Gonzalez, fotógrafo uruguaio que driblou a ditadura, só trazendo seu trabalho à luz anos depois.
A Revolução Cultural na China só acabou mesmo com a morte de Mao, em 1976. Em 1982, Li mudou-se para Pequim, mas foi apenas em 1988, na mostra coletiva intitulada Deixe a História Narrar o Futuro, que ele divulgou as fotos guardadas por tanto tempo. Em 2003, saiu, na Europa e nos EUA, o livro Soldado da Imprensa Vermelha, pela Editora Phaidon, contendo grande parte do material reunido. Agora, graças ao Instituto Moreira Salles e à revista Zum (que publicou texto de Dorrit Harazim sobre o fotógrafo chinês) poderemos encontrar Li Zhensheng e ouvir dele: "Fiz o registro histórico de um erro". Devemos, quem sabe, agradecer-lhe, afinal, só pessoas como ele permitem à história narrar o futuro.
Opinião
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