Ofamoso (e irascível) H. W. Fowler, professor e lexicógrafo inglês, vivia resmungando contra aquilo que ele chamava de didaticismo - o desejo insopitável (essa há quanto tempo eu não usava!) que muitas pessoas têm de ensinar alguma coisa do idioma a seus semelhantes. Alguns, como eu, têm a sorte de dispor de alunos ou leitores para com eles, consensualmente, satisfazer este impulso; outros, contudo, ficam reduzidos às oportunidades eventuais em que podem praticá-lo, despejando aquilo que sabem (ou julgam saber) sobre seus desafortunados parentes, colegas ou amigos.
O avião é um dos lugares preferidos dessa gente, pois os vizinhos de assento sempre serão vítimas em potencial. Não faz muito, num voo Rio-Porto Alegre, caiu um desses ao meu lado; o destino, porém, felizmente me poupou, pois ele viajava com um amigo, um pobre infeliz que teve de aguentar sua fúria dissertativa. Percebi, de saída, que era um morrinha profissional, e, macaco velho que sou, tratei de evitar qualquer contato visual, abri meu notebook e me pus a trabalhar. Os dois iam fazer negócios em Montevidéu, que o chato dizia conhecer muito bem. Lá pelas tantas, falando sobre a excelência da comida uruguaia, ele saiu-se com esta: "Vais comer o melhor churros da tua vida". O companheiro, inocente, ousou duvidar da concordância: "Não é um churro?". Pronto! O que poderia ser encerrado com um simples "Acho que não", virou tema de uma ladainha que durou de Curitiba a Porto Alegre.
A argumentação do celerado para defender o indefensável tinha itens e subitens. Que eu lembre, os principais eram três: primeiro, nem sempre o S final quer dizer plural, como se vê em ônibus; segundo, é uma palavra estrangeira, do Espanhol, e, portanto, sua flexão é diferente da nossa; por fim, o Português, sendo língua viva, deve se adaptar ao modo de falar das pessoas. Diante dessa verdadeira aula, proferida com aquela ênfase boçal, o amigo mudou de assunto, farto ou, quem sabe, convencido. Eu quase entrei na discussão (olha aí o didaticismo!), mas achei que o incômodo não valia a pena.
É claro que o anônimo maçante estava completamente errado: é um churro, dois churros. O argumento de que o S não indica necessariamente o plural é irrelevante: não juntamos nem uma dúzia de substantivos assim (pênis, tênis, lápis, pires), contra mais de duzentos mil que marcam o plural com esta terminação. Além disso, no Espanhol, de onde o vocábulo veio, também é churro, churros. Finalmente, quanto ao fato (incontestável) de que o Português está em constante evolução, é importante lembrar que ele muda nos detalhes, jamais no essencial, como é o caso da flexão dos substantivos. Dizer "um churros" é como dizer "um xales" ou "um chopes".
Aliás, com tanta palavra que importamos de outras línguas, nunca entendi por que não trazer para o Português o utilíssimo adjetivo ultracrepidarian, que aqui entraria como ultracrepidário. Esta é uma palavra do Inglês que eu sempre invejei pela precisão do conceito que ela exprime: designa aquele que, presunçoso ou imprudente, vai além do limite do seu conhecimento, dando opinião sobre algo que não é sua especialidade.
Para entender sua etimologia, não basta identificar os dois vocábulos latinos de onde ela deriva - ultra e crepidam, que significam "além" e "sandália", respectivamente. Essas duas palavras fazem parte da famosa máxima latina Ne sutor ultra crepidam ("não vá o sapateiro além da sandália"), alusão a um célebre incidente que, segundo Plínio, o Velho (XXXV, 10, 36) teria ocorrido com Apeles, o famoso pintor da Grécia antiga. Conta-se que Apeles, que costumava expor suas pinturas na porta do ateliê para observar as reações dos passantes, viu um sapateiro que examinava detalhada e demoradamente o pé de uma suas figuras. Ao indagar-lhe, curioso, o que tanto atraía sua atenção, foi informado de que o desenho da fivela da sandália estava equivocado. Apeles agradeceu a informação e apressou-se a retocar o quadro, corrigindo o erro. No dia seguinte, no entanto, o sapateiro, depois de constatar, com satisfação, que sua opinião havia sido acatada, apresentou nova crítica ao quadro, dessa vez quanto ao movimento da mão da personagem retratada - momento em que Apeles, então, o teria escorraçado, pronunciando a frase que se tornou lendária.
Esse provérbio, destinado a lembrar que todos deveríamos ter consciência de nossos próprios limites, aparece no adagiário de diversas línguas. No Brasil, é conhecido sob a forma de "não vá o sapateiro além da chinela" - o que não impede que pululem aqui os ultracrepidários, que fazem questão de opinar (quando não de dissertar!) sobre todo e qualquer assunto. No caso específico da Língua Portuguesa, então, o terreno é fértil para o aparecimento dessa praga; muita gente, pelo simples fato de conseguir falar e escrever, já se enche de razões para sugerir mudanças em nossa ortografia, propor leis sobre o uso de palavras estrangeiras, condenar vocábulos que lhe parecem supérfluos, etc., ignorando (aliás, a atitude ultracrepidária é típica de ignorantes) todo o saber linguístico que é necessário para começar a discutir esses itens.
O Prazer das Palavras
Cláudio Moreno: Ultracrepidário
'Nunca entendi por que não trazer para o Português o utilíssimo adjetivo ultracrepidarian'
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